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lamúria acima



A decepção anunciada por todas as rádios ao longo do dia, finalmente começava a taxidermizar os passantes. Árvores tresloucadas e faróis acesos. Não me perguntem sobre o velho. Ele despertou há pouco; a cama está quase intacta, pois ele não se move durante o sono. Boceja rouquenho. As coisas lanhadas até os ossos brancos; foi desbastado, sem dó, o sopitado rancor diário das esquinas e gentes; ficar sob essa lição deve ter sido um inferno. Nenhuma lamúria, palma e mais nada. Cada movimento esboçado sob o cobertor decrépito faz o velho se arrepender de ter acordado. Se pudesse ao menos se encolher. De nada serve a pergunta, mas vá lá: como é que essa dona foi se abandonar assim, esturricada dessa maneira? Não sei, parece que passa o tempo todo cosida aos livros! O quarto, abafado e enublado com vapores amarelos, sustenta ainda mais o silêncio do velho. Tártaro na dentadura tartamuda. Segundo me disse a linguaruda que vive para lá, depois da região portuária, foram esses livros de religião lidos e relidos com desespero que chuparam toda a vida que ela esbanjava, mansa. Numa ruína de símbolos, é assim que a pobre vai acabar. Quando o meio-dia deixou tudo assim de um jeito pasmo e árido, minha argumentação foi ouvida com atenção, figurou como um alívio para o pessoal daquele turno.

Comentários

erre amaral disse…
"Tártaro na dentadura tartamuda". O prazer no dejeto de seres humanos abjetos (objetos?).
Anônimo disse…
nossa, que delícia de ler! faz todo um livro, por gentileza.
Anônimo disse…
nossa, que delícia de ler! faz todo um livro, por gentileza.

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