Pular para o conteúdo principal

era uma vez o mundo do cronista jaime medeiros jr





Observe o cauteloso pervagar do poeta, e, agora, cronista (note o sentido mais alto e o sentido mais chão), Jaime Medeiros Jr, pelos sendeiros que se bifurcam, não só de seus vastos assuntos – pré-socráticos, arcanos do tarô, Nelson Cavaquinho, um deus de muitos e de nenhum nome, poesia, música, amor –, mas, sim, de suas cogitações vertidas nessa música prosística, toda, ou quase toda, de outro tempo; melhor: de outros tempos, mas não necessariamente a retro, nem de volta a um insondável ponto original. Tempos que são mundos interiores franqueados a nossa visitação emotiva e intelectual. E que às vezes nos deixam de fora dos seus limites; essa estranha hospitalidade também sabe nos fazer estrangeiros de sua língua saudosa de añelos, elos etimológicos, vocábulos pródigos resgatados ao Google.
Observe os largos tempos, a duração da beleza estremecendo os pequenos desencontros do prosaico, a humilde revolução de um dia passado a limpo junto aos livros, na sala de cinema, no caminho úmido de um parque, ao redor de uma imperiosa xícara café. Jaime é um cronista oswaldiano. Por que digo isso? Relacionar seu apetite multifário ao sentido da antropofagia pensado pelo patriarca modernista (apropriar-se do legado e do alheio), embora seja possível, não me parece o mais interessante. A ligação que estabeleço entre Oswald de Andrade e Jaime Medeiros Jr pode ser explicada de maneira mais sincera e modesta, para tanto basta citar um brevíssimo poema do autor de Um homem sem profissão (1954), e que diz assim:

crônica[2]

Era uma vez
O mundo

No texto de um cronista de verdade anda um mundo inteiro. A palavra “crônica”, na sucinta economia do poema, compila em si tanto a função de título como de primeiro verso. Podemos dispor dos sentidos do mundo desde o silêncio que vem depois do verso “O mundo” suspenso na alvura porosa da página. O cronista é generoso com o mundo. A crônica é desprendida por natureza. Observe sua compaixão pelo tempo e pelo espaço. Se o poeta conta com o mundo da linguagem para levar a cabo sua tarefa de apagamento do mundo renomeando-o vertiginosamente, o cronista, por sua vez, modula a linguagem do mundo porque, como certa vez disse o cego Homero, as dores e aflições humanas só existem como tema para os cantos e as narrativas. A crônica de Jaime Medeiros Jr é uma espécie de epos de uma intimidade que se reconhece e se dissipa na conversa jogada fora (mas à maneira de um coup de dés, de onde pode surtir a sua arte), na inatividade ativa da ordinária luz de dias e noites vividos na tensa tranquilidade do humor pensamentoso.
O cronista Jaime Medeiros Jr canta e ouve a cadência do mundo. Misto de flanêur e de peripatético (esse um que não pretende ensinar, mas sim aprender andando, passeando) que folheia aos nossos olhos o seu jornal íntimo, crítico da pósmodernidade, e que se vê implicado nela, e nos observa. Observe, agora – caro leitor, intérprete e executante dessa música ligeira –, como ele nos observa, calmo, com desavisada simbologia.


[1] Ronald Augusto Poeta, músico, e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Despacha no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é diretor-associado do website WWW.sibila.com.br.
[2] In Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. São Paulo, Globo, 2006.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão ...

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a...

o falso problema de ugolino

A arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva (abstrações, recortes, rasuras, reduções sintáticas, etc.) que se limita complementarmente com uma - aparente - scriptio plena . Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído em Nove Ensaios Dantescos (1982). Nesse breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio em que Ugolino supostamente devora, vencido pela fome, os cadáveres dos próprios filhos e netos (Inferno, XXXIII), não passa de inútil controvérsia. Borges sustenta a tese de que deveríamos propender a uma análise estética ou literária do episódio em questão. À pergunta de índole historicista, Ugolino com...