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os outros eus com que o poeta se mascara





Augusto dos Anjos é e não é o poeta do hediondo; é e não é um poeta kitsch; é e não é um poeta barroco; tem um pé no pop e outro no cult. Por ser talvez o poeta mais popular da tradição poética brasileira, Augusto dos Anjos é de todos e é de ninguém. Só quando nos situamos poeticamente entre as capas do seu livro Eu (e a primeira pessoa do título trata-se de uma persona, isto é, de um símile “através do qual” o poeta faz soar uma voz) percebemos que Augusto dos Anjos se multiplica, na verdade, em outros eus.
O paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914) morre aos 30 anos. Seu único livro publicado, Eu (1912), aparece dois anos antes de sua morte. Augusto dos Anjos produz sua poesia num complexo enclave temporal de estilos poéticos e concepções de mundo. Sua formação de poeta incorpora, de um lado, os contributos do simbolismo e do parnasianismo e, de outro, se deixa contaminar (entre outras ilusões deterministas) pelo positivismo e pelo darwinismo. O filósofo alemão Schopenhauer lhe transmite uma importante dose de pessimismo.
Essas forças conflitantes transformam sua poesia num coquetel explosivo. O poeta oscila entre um proliferante discurso de refinada e grotesca imagética (forma expansiva) e um obsedante pendor por um “conteúdo inessencial” invariável que pode ser resumido em termos de uma retórica do desejo necrófago, do elogio e da filiação ao cadáver-carcaça, mas um cadáver que fervilha trazido novamente à vida pelos vermes, nossos hipócritas irmãos, nossos iguais. A existência imaginada por este prisma mecanicista, sem esperança nem temor, existência mais de zumbi do que de antropófago, encarna numa forma também mecânica que começa a não corresponder ao desejo de expressão do artista, isto é, refiro-me ao modelo restritivo do verso metrificado. Augusto dos Anjos tenta fazer o novo (e em vários momentos o consegue) numa arte exaurida: a arte da métrica.
Sua condição de poeta do aquém-modernismo radica nessa situação de crise. Era preciso outro tipo de verso, mais ágil, mais plástico às contradições e aos estranhos modelos de sensibilidade com que lidava o paraibano. Mas Augusto dos Anjos morreu cedo, morreu antes de experimentar o salto mallarmaico do poema como constelação de signos na página. Embora alguns estudiosos da obra do poeta digam com algum exagero que ele foi “o primeiro mestre da nossa modernidade poética”, que foi o primeiro a recusar o falso sentimento e a retórica colocando o cotidiano na ordem do dia da poesia, não há como negar que em sua poesia há pesadas camadas de retórica, oratória de púlpito, emoção empostada, soluções discursivas que, não fossem as exigências métricas, seriam perfeitamente descartáveis. Enfim, em seus poemas ainda persistia tudo aquilo que no período caracterizava à maravilha a arte da poesia em seu viés normativo. Ou tudo aquilo que na época era considerado poeticamente correto praticar no gênero lírico. O poeta, em termos de exuberância discursiva, está para poesia assim como Euclides da Cunha está para a prosa. Ambos chegam a ser perdulários no que diz respeito ao léxico.
O fenômeno da popularidade de Augusto dos Anjos encontra uma explicação razoável em Aristóteles, na Poética. Diz o grego: “Parece, de modo geral, darem origem à poesia duas causas, ambas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância e todos têm prazer em imitar. Prova disso é o que acontece na realidade: das coisas cuja visão é penosa temos prazer em contemplar a imagem quanto mais perfeita; por exemplo, as formas dos bichos mais desprezíveis e dos cadáveres”. Augusto dos Anjos nos faculta visões exasperantes que na verdade mais nos interessam do que nos inquietam.
Com relação, por exemplo, à Commedia de Dante, é comum ouvirmos observações de pessoas dizendo que a melhor parte do poema sacro é o Inferno, que o Purgatório é mais ou menos e que o Paraíso é um tédio só. Não obstante a luz paradisíaca que, na metáfora cortês do poeta italiano, é o amor divino, o qualificativo “dantesco” é usado, de ordinário, apenas para caracterizar cenas e acontecimentos repugnantes, bizarros ou terríveis. Em parte a popularidade de Augusto dos Anjos se explica por esse viés do “quanto pior melhor”; “notícia boa não vende jornal”. Augusto dos Anjos recria em seus poemas a rotina sórdida e infernal da prosaica condição humana confinada nessa mecânica animal da sobrevivência.


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