maria helena vargas, oliveira silveira, joão batista, jorge fróes e eu (1995)
POESIA
BRASILEIRA EM CALLALOO1
Em 1995, o volume 18, n.º 4 da revista
Callaloo, Fall – Estados Unidos –, foi integralmente dedicado à
literatura negra contemporânea produzida no Brasil. A partir de então – e
efetivando um compromisso assumido pelo seu editor, Charles H. Rowell –, a obra
criativa dos escritores afro-brasileiros vem sendo estampada em suas páginas
com acentuada regularidade. Provam isso os volumes posteriores de Callaloo.
No vol. 19.1, Winter (’96), excertos da obra Livro de Falas, do poeta
mineiro Edimilson de Almeida Pereira, aparecem junto a uma entrevista concedida
pelo autor. E agora, mais recentemente (’97) o vol. 20.1, Winter, apresenta ao
leitor de língua inglesa uma perspicaz análise teórica e a tradução de poemas
que aderem a um aspecto bastante significativo da cultura brasileira, isto é, a
religiosidade. A desempenhar ambas as tarefas, a de crítico e de sensível
tradutor, está o poeta Steven F. White que, aliás, morou no Brasil cerca de um
ano, estudando e traduzindo a poesia contemporânea praticada aqui. Vejamos,
então, quais as veredas que o poeta-crítico resolve trilhar na abordagem do
assunto.
Resumidamente, o estudo de Steven
White, intitulado Reinventing a sacred past in contemporary afro-brasilian
poetry, pretende entre outras coisas, comparar as práticas correntes das
religiões afro-brasileiras com aquela poesia que tem como alvo tal temática e
que, em sua performance, dialoga estruturalmente com estas práticas. Segue-se
ao ensaio a recolha de poemas de cinco autores negros. Muito acertadamente,
White refere que, em conjunto, o viés aberto ou re-inaugurado pela obra desses
poetas, constitui de certo modo, um contraponto à presença dos sistemas
simbólicos do cristianismo, que marcam indelevelmente alguns espécimes da
poesia brasileira do século vinte. A este propósito, e ao mesmo tempo mostrando
estar a par de algumas referências básicas da nossa tradição poética, o crítico
cita como exemplo o livro de poemas Tempo e Eternidade (1934), de Murilo
Mendes e Jorge de Lima.
Sempre em alto nível, Steven White
analisa e traduz os poemas de Edimilson Pereira, Ricardo Aleixo (MG), Oliveira
Silveira (RS), Estevão Maya-Maya (MA) e Lepê Correia (PE). Suas traduções não
se perdem em malabarismos formais, mas tampouco são servis ou insossas;
equiparam-se, mais ou menos bem, aos originais. Tradução: perder aqui, para
ganhar acolá. Já o roteiro de ensaio, organiza-se em torno da seguinte idéia: é
possível perceber – sem prejuízo das diferenças e peculiaridades que definem
cada um dos autores – um traço comum entre eles, a saber, uma disposição para
recriar através de função poética a sacred past. Por seu turno, este
projeto de recriação confina com um esforço coletivo que objetiva antes
redefinir uma imagined community, do que reivindicar uma comunidade cuja
identidade só se manteria na forma de uma camisa-de-força.
Pois, esta poesia permeável aos
influxos das religiões de origem africana – de tradição nomeadamente iorubana e
banto –, põe em sincronia, um tanto tardiamente se podemos dizer assim, o
discurso literário com aquelas outras formas de expressão estética que, salvo
engano, se comportam como uma autêntica escritura háptico-visual a dar voz e
cena a toda uma preceitística religiosa; formas de linguagem cujo trato com o
sagrado e sua eventual recriação, repercute no âmago delas como se fora uma
espécie de segunda natureza. Simplificando ao máximo, pode-se argumentar, por
exemplo, que, a dança, a música e a escultura – de extração africana –, em
termos semióticos, são manifestações indiciais de divindades e
mitologias em estado de comunicação com o contingente. A figura do indizível
se deixa conjurar e encarna afivelando máscara física, torna-se visível por
meio dessas linguagens não-verbais. A identificação entre fundo e forma se dá
de um modo quase perfeito. Como separar o orixá do corpo inteligente que
rodopia no centro do terreiro?
Mas, como se comporta a poesia na sua
relação com o sagrado? Antes de mais nada, não se pode perder de vista que, em
poesia, uma analógica se projeta sobre um arcabouço lógico-discursivo. Ou seja,
a poesia parece, mas não é. Ela parece dizer – e diz –, mas no fundo não diz,
isto é, não é capaz de dizer algo que se enraíze em máxima, prescrição moral,
lição, etc. E, em razão disso – e fiquemos apenas com este exemplo –, o real
que ela escrutina e ao mesmo tempo finge nos desvelar, comparece aos nossos
olhos vertido em imagem indecisa e, no mais das vezes, conflitante com aquele
real que até há pouco julgávamos conhecer como a palma da mão. Assim, partindo
deste ponto de vista, podemos reformular a indagação: como os poetas em questão
entendem a recriação deste sacred past?
Entre a animada inteligência deles e a
esfera do sagrado enquanto figura, interpõe-se o mundo da linguagem. Em
termos de valores estritamente poéticos, o quesito básico a ser cumprido para
recriar tanto o mundo do além, como este mundo de aquém-túmulo
(Guimarães Rosa dixit) é, em última análise, o desenvolvimento de uma
consciência extrema acerca dos limites e virtualidades daquele mundo
mencionado antes dos outros dois: mundo surdo, o opaco reino das
palavras jazendo “ermas de melodia e conceito”.2 Aparentemente,
Steven White tem ciência disso, e, melhor ainda, dois ou três dos poetas
glosados pelo ensaísta também o sabem.
Por paradoxal que pareça, a recriação
– em sentido forte – desse passado sagrado só se cumpre a contento se o caráter
emprestado a esta poesia não desprezar uma alta dose de irreverência:
sucessivos lances transgressores. E Steven White, com efeito, se esforça em
abordar por este prisma os textos que informam a sua pesquisa, considera-os
mesmo trangressor-works.
Me parece que, neste passo, o ensaísta
demonstra seu sadio interesse de encetar um diálogo crítico com um certo artigo
escrito por este resenhista, e publicado originalmente em 1995 dentro da série Cadernos
Porto&Vírgula, particularmente o de n.º 11, Presença Negra no RS.
O texto em causa, chama-se “Transnegressão”.3 Em linhas gerais, pode
ser interpretado como uma diatribe aos recyclers of that same old shit: the
pseudo-proletarian literature of political engagement, na versão de S. F.
White. Grosso modo, a crítica aos elementos de superfície se resume a isto.
Mas, desde uma angulação mais reveladora, o que de fato interessa, é a censura
a uma espécie de modus legitimador que – no respeitante a uma descrição
dessa literatura, negra – visa a transformar em paradigma aquelas obras em que
se observa em primeiro plano, à maneira de um pórtico, a afirmação da
identidade, ou um nós excessivamente ideologizado e, de resto, dificult
to verify, mas indispensável in terms of demanding for the group a
social and political space in a conflictive situation. Um efeito possível:
o poeta se apresentaria como útil depoente, seus poemas, ao fim e ao cabo, se
revelariam como meras provas, documentos: literatura como testemunho, misto de
verismo e depoimento correto.
Mas, indo em sentido contrário,
algumas realizações poéticas transnegressoras põem em xeque esta quase
hegemonia do documento e da essência negra engessada em santuário, reserva
natural ameaçada. Não obstante a crítica radical que os escritores desta
estirpe movem contra os discursos falaciosos, cooptadores, nenhum deles faz
vista-grossa ao fato de que “a poesia que se ‘vende’, seja por vileza ou por
imperícia, está condenada à morte, sem indulto possível”. Trata-se de poesia
autocrítica, intrinsecamente transnegressora, auto-irônica, mas sem escorregar
para um tipo de cinismo fashion que parece ser, em última instância a
própria substância do pós-moderno. Em que pese a virulência das objeções e a
recusa “apaixonada” às posições preservacionistas, que Steven White assinala em
Transnegressão, a tendência do ensaísta é por não negar de todo a
legitimidade delas. Pelo contrário, ele parece mesmo concordar com a sua
(im)pertinência, que propõe, em suma, uma vontade transgressora como estratégia
para produzir know-how inventivo. Razão pela qual, Steven White à certa
altura, ou antes, dando por encerradas as considerações acerca do meu artigo,
escreve, “I believe the texts I have chosen to analyze in this essay might be
considered transgressor-works...”.
Entretanto, o dado que talvez eu tenha
de levar em conta no estudo de Steven White – fugindo, de minha parte, a
qualquer competição arrivista – seja que, contrariamente a toda argumentação
transnegressora, fica provado, por meio da penetrante análise que White
desentranha dos poemas e por eles mesmos, fica provado à maravilha, a existência
de poesia inteligente e inovadora, mesmo no âmbito das ideias feitas,
lume traiçoeiro em torno do qual volitam pequenas certezas morais, políticas e
religiosas. As que sobrevivem à incandescência são catalogadas e atravessadas
por alfinete.
Afinal de contas, ao que tudo indica,
os poemas de Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Oliveira Silveira,
Estevão Maya-Maya e Lepê Correia, não se dobram ao fácil, a bem da verdade não
parecem estar “condenados à morte, sem indulto possível”, (H. M. Enzensberger dixit).
Isto porque, no fundo e bem vistas as coisas, a recriação de um passado sagrado
serve apenas de pretexto para a retomada de uma outra viagem imemorial: os
poemas, repropondo mitologias, enervando divindades negras, põem em movimento,
isto sim, os fundamentos da operação poética, transformam “a língua de todos os
instantes, numa linguagem de poucos instantes”; modulam um discurso protéico
que se estrutura a partir da volatilidade dos seus signos. Ouçamos as Flores
da Fala de Edimilson de Almeida Pereira:
As quartinhas
altares
onde os invisíveis
absorvem
e mais ofertam
os
enigmas do mundo.
O
chão em meialua.
Ontem
os lábios minguantes
ao
sereno.
Calunga lungara
Vou
pôr em palavras
o
que não é possível.
São
águas-palavras
que
se dissolvem. (...)
Deste modo, só aparentemente a ênfase
recai sobre um sacred past. O que de fato é re-imaginado, ou
re-manufaturado, é a linguagem, ela mesma. E a língua-linguagem se submete; se
finge dócil. Oliveira Silveira vira-a ao avesso, dá-lhe o assentamento de
quatro sílabas fincadas em ritmo binário indescidível entre ser ascendente e
descendente. Faz da fala um florete percussivo:
Eh Xapanã!
Tempo de tanta
doença
braba
e
lá vem ele,
o
da varíola,
o
da vassoura
–
vem Xapanã.
(...)
Então
aceita
nosso
singelo
preito,
pleito. (...)
Com efeito, a linguagem, no
espaço-tempo do poema, passa por uma brutal metamorfose ao escolher o objeto –
o escolho – que, via sagração, acabará por romper o molde do banal, ou do
profano. O objeto-escolho, à beira do abismo da linguagem, é lavado de si
mesmo. Vale dizer, ele experimenta a sua anamorfose. Ricardo Aleixo “dá um nome
novo” à poesia: Nanã. E o poeta mineiro aceita a sua língua(gem) ferina,
feminina. “Senhora da alvura”: o silêncio branco do papel (a água escura), onde
“um poema começa e por onde ele termina”.4
Nanã
Mãe
sem marido,
avó
do universo.
Senhora
da alvura.
Nanã,
a de rosto
sempre
coberto.
(...)
dona
dos cauris,
filha
do grande pássaro
Atioró.
Água.
Lama.
Morte.
Mãe
do segredo
do
mundo.
O
úmido.
O
que flui.
Água.
Lama.
Filhos.
Teus
gestos
lentos
no
fundo
da
água escura.
_______
1.
Callaloo é uma revista devotada a obra
criativa e aos estudos críticos dos escritores negros das Américas e África(s)
publicação trimestral (Winter, Spring, Summer, Fall) editada por The Johns
Hopkins University Press, com o patrocínio da University of Virginia. Callaloo
foi fundada em 1976.
2.
Fragmentos extraídos do poema Procura da
Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, e que integra o volume A Rosa do
Povo, 1945.
3.
Compósito verbal cunhado pelo poeta Arnaldo
Xavier, autor de São Pálido e Roza da Recvsa, entre outros.
4.
A frase aspeada se compõe de dois versos (o
primeiro e o último, respectivamente) do poema “Le Don du Poème”, de Haroldo de
Campos, e é peça integrante do livro A Educação dos Cinco Sentidos,
1985.
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