Ronald Augusto[1]
As vanguardas artísticas
e literárias da virada do século 19 para o 20 experimentam um processo até
certo ponto rápido de consagração. Em outras palavras, se historicizam até de maneira
surpreendente, inclusive porque, não podemos nos esquecer, os registros ou o
anedotário da resistência, seja aos desdobramentos da vanguarda europeia
aclimatados às nossas condições latino-americanas, seja ao modernismo tardio, formam
uma pequena história à parte – exemplo disso, no caso brasileiro, é a crítica
neurastênica de Monteiro Lobato à pinturas que Anita Malfatti expõe em 1917.
Assim, tal resistência, pelo forte teor arrivista assumido por suas posições e
contraposições, não dava, à primeira vista, indícios de que essas experiências fossem
facilmente assimiladas, sequer que se chegaria a um acordo valorativo em torno
à sua estranheza.
Portanto, a movimentação
e a bibliografia de toda a polêmica relativa ao problema contribuiu, ao fim e
ao cabo, para fazer da recusa conservadora e alarmista, aceitação
incondicional. A tolerância dos iguais e do senso comum à rotina das rupturas
(às vezes aparentes) ofereceu as condições necessárias para que o alto
modernismo viesse a se tornar, segundo alguns analistas, “uma das manifestações
mais oficiais da cultura ocidental” e, por isso mesmo, se tornasse
desencadeador também de interpretações reativas e sem paciência com relação àquilo
que, de resto, é – a contragosto de uns e outros – a parte principal desse
processo, a saber, os problemas de objeto que subjazem à ficção do “nacional” assumida
ou evocada por esses movimentos. O modernismo como vanguarda se torna, em fim
de contas, um classicismo enrustido que cumpriria, agora, reconsiderar de um
ponto de vista tacanhamente sociológico ou historiográfico e capaz de,
pretensamente, desmontar crenças consolidadas (em virtude das relações de mútuo
prestigiamento) a respeito de importantes nomes dos movimentos de vanguarda
argentino e brasileiro. E é o que pretende Sergio Miceli com Vanguardas em retrocesso.
Embora não se trate
de perspectiva irrelevante – isto é, se aceitarmos, a princípio, que o significado
é algo que se apresenta antes ou depois da fatura mesma do objeto
arte-feito – esquadrinhar esses indícios, como que constrangedores de um pertencimento
social, nas determinações compositivas e estéticas desses artistas (Jorge Luis
Borges, Mário de Andrade, Lasar Segall, Xul Solar, entre outros) não os
decodifica nem exaure suas valências inventivas e também não os torna menos
inquietantes, apenas nos situa ou nos coloca eruditamente sabedores – talvez
fosse melhor dizer: informados – de algo perfeitamente secundário no que
concerne à fruição dos objetos de arte realizados por eles.
Embora o editor
advirta na orelha da obra que a atenção dispensada por Sergio Miceli em seu
estudo “aos condicionamentos, às relações pessoais, familiares, e às tentativas
fracassadas não significa diminuir os objetos de estudo”, a pesquisa, ainda
segundo o editor, ao se ater detalhadamente em uma série de materiais,
circunstâncias e polêmicas relativas ao momento restituiria a eles (os objetos)
“a dimensão humana” e explicaria “as condições que permitiram sua emergência”.
Não resisto a ler
essa advertência do editor do seguinte modo: a pesquisa de Miceli tem, de um
lado, algo de redentora (pois pretende fazer circular entre nós “a dimensão
humana”, a physis, desses rapazes
bem-nascidos) e, de outro, de poder de polícia (“golpear certezas”, diz a
orelha, com o fito de denunciar “as condições que permitiram sua emergência”, a
das vanguardas latino-americanas).
Miceli e outros
críticos – ele não se encontra sozinho nessa canoa remendada e isso menos o
isenta do que o protege – descrevem essas vanguardas, que buscam seu campo de
autonomia, como se elas fossem uma inadvertida construção levada a efeito por
seus executores tão só para obscurecer ou enublar uma verdade que esses
pesquisadores não podem permitir que seja calada, a saber, o pertencimento
social de classe dos nossos pais fundadores do alto modernismo como avalista de
sua reputação.
A acusação de Miceli segundo a qual os
representantes dessas vanguardas, através de uma “postura política escapista”[2], tentam
apagar ou desviar nossa atenção desses vestígios talvez não signifique que, por
exemplo, Borges, Oswald e Mário quisessem, de fato, exibir ou disfarçar o que
tivessem de conservadorismo ou de dandismo perdulário, apenas que, tendo em
mente a intrínseca ambiguidade da arte (a que Miceli faz vista-grossa), talvez
fosse mais atraente afirmar, mais uma vez, a relação complexa e controversa
(que está nas antípodas do jogo simplório de “causa e efeito” proposto no livro
em apreço) do artista na sua interação com a sociedade do que marcar passo na
obediência civil. A propósito, segundo Roman Jakobson, “a ambiguidade se
constitui em característica intrínseca, inalienável”[3] da
poesia, e das artes em geral. Portanto, continua o linguista, não só o próprio
poema, mas igualmente seu destinatário e seu remetente se tornam ambíguos. Em
outras palavras, toda obra de arte se define social e historicamente; ao mesmo
tempo, parte da sua contundência é resultado de um corte sincrônico formal no
fluxo da tradição que a faz irredutível ao que quer que seja.
Se, para o artista, assumir essa ambiguidade não parece lhe causar o menor
embaraço, já que sua atividade supõe o jogo de máscaras e duplos, ou ainda, que
seu apetite sígnico o situa num espaço de abandono relativamente ao discurso
que lhe cobra a opção entre a verdade e a mentira, já para o destinatário, a
recepção, assumir esse risco de se autoinfligir a desaparição da identidade é
infinitamente mais doloroso, afinal, o leitor – principalmente o leitor
conservador – tem o compromisso com a decodificação; para ele nada é comparável
à explicação do objeto estético. O objeto estético serve apenas de testemunho ou
de confirmação a esta ou aquela visada interpretativa em condição de emboscada
desanuviadora de um enigma proposto como divertissement.
Longe de mim afirmar
que o viés de leitura levado a cabo por Sergio Miceli em Vanguardas em retrocesso, mesmo com toda a sua casmurrice
sociológica, deva ser descartado; não. Só me inquieta um pouco perceber que o
autor não abre a menor possibilidade para que a sua abordagem possa comportar a
virtude do precário, do provisório, de que talvez ele não tenha pensado tudo,
ou antes, de que ele, quem sabe, não tenha pensado corretamente a respeito do
assunto. O problema é que toda essa confiança calcada num exaustivo e quase
sobrenatural esforço de pesquisa (e no prólogo o autor não cansa de nos avisar
sobre isso, tentando fazer assim mais extraordinários seus esforços[4])
acaba por nos revelar não um intelectual em ação – ou seja, o sujeito que se vê
implicado nos logros e dilemas que investiga, que é capaz, inclusive, de pensar
contra si mesmo de modo a problematizar a eficiência, tão arduamente conquistada
ou alardeada, de seu ponto de vista –, acaba por nos revelar não um
intelectual, mas um renitente professor apenas aplicado, um secretário cioso
dos seus documentos. Miceli é categórico, não admite dúvidas. Não caberia polemizar com o
autor propondo-lhe a seguinte questão, mas vá lá: como pode um intelectual se
tornar grande se tem medo de não ser compreendido? O pior é que para o autor de
Vanguardas em retrocesso não se trata
de ser ou não compreendido, mas de não ser dobrado, de não se dispor ao risco
do jogo estético e sua deriva semântica; Sergio Miceli, feito um míssil
teleguiado, se dispõe tão só a solapar a suposta idealização desses artistas da
vanguarda substituindo o triunfo (ou a impostura?) deles com outro triunfo (ou
impostura?), isto é, a verdade da sua modelagem sociológica. Como
afirma o poeta Paul Valéry, o leitor que se lança na caça da “verdade” só
consegue capturar, afinal, “sua própria sombra. Gigantesca, às vezes; mas
sempre sombra”.
A abordagem de
Sergio Miceli desdenha a lúcida percepção de Edmund Wilson que em seu, hoje clássico,
O Castelo
de Axel, reconhece nos representantes do alto modernismo a importante
dívida simbolista ou, dito de outro modo, Wilson entende que os artistas das
vanguardas da virada do século são simbolistas lato sensu, e que a “história literária do século 20 é,
grandemente, a do desenvolvimento do Simbolismo”[5]. E
não é por outra razão que Borges, comparando o seu escrito a uma milonga
executada com languidez, diz mallarmaicamente: “La mano se demora en las cuerdas y las palabras cuentan menos que los
acordes”. Infelizmente o sociólogo Miceli, que não será jamais um boleiro nesse
“esporte de combate” (Bourdieu assim define o discurso da sociologia), pois o
senhor Miceli, no máximo, não passa de um volante retranqueiro, e, assim, a
mórbida agudez dos seus sentidos, o embotamento da sua percepção burocratizada pela
extrema atenção dispensada ao rito e ao traquejo acadêmico conduzem esse
sociólogo, na prática simplista do seu esporte, a tomar a arte como mero sparring; Sergio Miceli só tem apetência
ou ouvidos para as palavras (a significação) que, em seu aspecto inteligível
(deslinde do enigma), se referem ao mundo, ao tempo.
Grosso modo, o
crítico – e no que diz respeito à essência de sua atividade – com frequência,
para recuperar-se de si ou para esquecer de si mesmo, encontra abrigo (cava uma
zona de escape ou a sua própria cova) em alguma inimizade ou assunto com o qual
mantenha uma forma de antipatia intelectual e intransigência leviana. Nos
melhores casos essa prática pode resultar em boas análises, pois o que está em
causa, em que pese certa carência de fair
play, é a polêmica necessária e salutar, a suspeição que não se presta ao
beija-mão. Desgraçadamente, a rotina inercial e fora da medida de tal
procedimento crítico se converte em estupidez. E é o que acontece em Vanguardas em retrocesso. Miceli dá
mostras de que por não gostar de literatura resolveu ensiná-la (embora mal) e
admoestá-la por sua ambiguidade constitutiva. O autor teima em negar dois traços
verticais da arte da literatura e que são fundamentais na economia construtiva do
poema, do objeto estético, refiro-me tanto à multiplicidade de significados,
quanto à forma. Mesmo contra a má vontade de alguns leitores essa obviedade
ainda precisa ser repetida, afinal de contas, para os impacientes
com as armadilhas e os refinamentos de linguagem — ainda
que, como nos lembra Leda Tenório da Motta, “não possa haver poesia sem isso” —
falar sobre o “conteúdo” soa menos impertinente. Com efeito, em Vanguardas em retrocesso percebe-se a
tentativa de colher peras ao olmo. Uma abordagem que visa apenas à dimensão
histórico-social da literatura e ao cobrar o que, aparentemente, lhe falta ou escapa
aos interesses dos seus autores, não percebe o que de mais importante ela
contém.
Sergio Miceli, no esforço de comprovar o presumido retrocesso
das vanguardas latino-americanas em virtude de sua dívida com oligarquias
decadentes, convida o leitor de hoje a (re)ler os versos de determinado poeta
modernista apenas para reconhecer (anuindo com o comentarista) os traços
passadistas desse espécime. O convite é falacioso, pois, em certo sentido, não
se pode esperar outra coisa desse genérico “leitor de hoje” senão uma correlata
impaciência com tal dicção estranha ao seu paladar saturado de tanta informação
secundária.
Alguns nomes mencionados por Miceli como
confirmação da tese de que o generoso lastro social e econômico seria decisivo
para que o sistema literário os aprovasse – ao menos no tempo em que viveram –
dando, assim, sustentação à sua argumentação, alguns desses nomes mesmos se
mostram, a seguir, sem nenhuma importância. É o caso de lembrar o mecenas e
editor Augusto Frederico Schmidt, à época, tido e havido por seus iguais, que
eram editados por ele, como excelente poeta. Mas que importância, afinal, tem o
supracitado poeta hoje em dia? Nenhuma. Por outro lado, embora a marginalidade
de alguns autores se explique, temporariamente, por sua condição econômica e
social, digamos, desfavorável, também tais exemplares não vingam porque com o
transcurso do tempo acabaram por se revelar medíocres como artistas. Assim,
tanto a consagração de uns em termos de contrafação endogâmica, como os expurgos
de outros, nos revelando uma espécie de apartheid
social, quando vistos na perspectiva do tempo, indicam que tudo que não diz
respeito aos problemas formais e estéticos, para relevância desta ou daquela
obra, é secundário e assim deve ser tratado. Mas Miceli, ao contrário,
superestima o que não interessa diretamente à fatura do signo estético. E mais,
por pouco não os culpa, os fundadores das vanguardas, por serem filhos da – ou
por estarem ligados à – “nata dirigente”.
E que grande
novidade há em fotografar esses escritores e artistas dando um piscar de olhos
ou se apresentando com a boca na botija relativamente à sua condição de membros
da elite, credenciados, portanto, a cumprir as tarefas exigidas pelo meio onde
buscam e sempre acham o crédito que lhes é devido? Não é novidade que a
endogamia faz parte dessas relações artísticas desde sempre. Hoje, ainda que de
maneira mais volátil, experimentamos situação análoga. A argumentação contida em Vanguardas em retrocesso busca comprovar que os principais artistas
e escritores argentinos e brasileiros só lograram realizar suas experiências
criativas em virtude das “condições privilegiadas de fortuna pessoal”; Miceli
vê de maneira causal “a folga material como que espicaçando o arrojo de
invenção”[6].
Sem entrar, agora, no
mérito das questões de valor e reconhecendo uma série de diferenças entre eles,
podemos evocar toda uma linhagem de artistas que não cabe nesse molde proposto
pelo sociólogo e que pressupõe uma fórmula perfeita (fortuna pessoal-familiar +
boas relações com grupos de mando) para o alcance da consagração. Sirvam então
de contraexemplo os nomes dos seguintes artistas, todos, cada um a seu modo,
grandes inventores que viveram em precárias condições sociais e econômicas e
que, a contragosto da circunstância, ainda fornecem insumos estéticos poderosos
ao presente: François Villon, Cruz e Sousa, Edgar Allan Poe, Velimir Khlébnikov, Arthur Bispo do Rosário, Jimi Hendrix, Paulo Leminski,
Cartola, Nelson Cavaquinho. Esses poetas, artistas e
músicos inauguram uma tradição que começa a se plasmar paralelamente à
decadência das aristocracias e das elites. Mas isso só começa a mudar de modo
mais notável, e sempre com interrupções, no último quarto do século 20. Desde a
emergência da cultura pop as classes C e D começam a fornecer escritores e
artistas.
Vanguardas em retrocesso nos apresenta Sergio Miceli na figura de um crítico
legista, o
sociólogo realiza verdadeiras necropsias textuais para investigar a causa do
apagamento das práticas sociais na obra desses criadores que são o alvo de sua
pesquisa, práticas sociais que, segundo Miceli, viabilizaram suas reputações. Para
o crítico legista tal investigação se faz necessária principalmente quando este
apagamento ocorre em circunstâncias misteriosas. É como se estivéssemos não
diante de algumas obras de arte, mas diante da sonegação de provas de um
crime. Miceli interpreta assim a revisão
perpetrada por Borges tendo em vista a reedição de um conjunto de suas obras no
ano de 1930: “Teve a cautela de borrar os vestígios afetivos, pessoais e
profissionais – ao eliminar dedicatórias, ao omitir nomes de pessoas próximas,
ao renomear certos poemas, como se quisesse eliminar o bagaço de uma
multifacetada experiência social...”[7]. No
que parece ser simplesmente o trabalho do poeta no exercício de um decoro
estético, isto é, no movimento
de reduzir seus escritos à sua essência, o sociólogo detecta uma censurável
sonegação de provas. Outro exemplo desse procedimento de crítico legista, adotado por
Miceli, está na passagem relacionada a uma série de eventos sucedidos na
infância do autor de Fervor de Buenos
Aires. A experiência de nomadismo familiar de Borges que se efetiva em
função da busca da cura para a cegueira do patriarca, as inúmeras cirurgias, os
fracassos resultantes, tudo isso, de acordo com Sergio Miceli, “deve ter
infundido certa dose de suspense e irrealidade na educação dos filhos”[8]. O
sociólogo, pelo menos aparentemente, não chega à conclusão de que estaria aí a
raiz da literatura do argentino, mas deixa sugerido ao leitor, numa espécie
convencimento subjacente (e reza a locução popular: “como quem não quer
nada...”), que não julgue apenas que isso seja possível, mas, antes, que sem
tais eventos ocorridos na vida do jovem Jorge Luis Borges, conclua que,
efetivamente, o argentino não escreveria tudo o que escreveu nem como escreveu.
Miceli analisa essas realizações poéticas pela
fechadura da história e das práticas sociais e julga a relevância delas a partir
do momento em que se originaram. Só que a permanência de muitas dessas obras, a
vitalidade de umas e/ou a obsolescência de outras não merece do sociólogo uma
análise satisfatória. Se, do ponto de
vista historiográfico, o crítico demonstra coerência, e a visão aristotélica o
abona, já que Sergio Miceli foca o seu interesse na narração de acontecimentos
e fatos particulares em que se envolveram os vanguardistas argentinos e
brasileiros na afirmação de sua importância, por outro lado, em uma visada em
perspectiva a abordagem decai em miopia revanchista. Sua leitura, vazada num
discurso prêt-à-porter rente ao academicamente
tolerável, ao contrário da leitura interessada nos aspectos estritamente
poéticos e construtivos (votados a orientar e/ou radicalizar a
produção de obras do presente que se referem à tradição), não ajuda a pôr em movimento a literatura nem a
arte em geral, pois
aquilo que advoga não gera maiores consequências a não ser talvez para a retórica
do controle institucional da interpretação.
Antonio Candido, crítico que, notoriamente,
não descura das questões sociais no estudo do texto literário, admite que “há
sem dúvida mais estudos sobre prosa do que sobre poesia; mas os estudos mais
revolucionários e talvez os mais altos dos nossos dias, até bem pouco, foram de
crítica de poesia”[9].
Estudos que, com efeito, reconheceram-na como um fato estético cuja finalidade
não condiz com a demonstração nem com a exposição do que quer que seja. A
linguagem poética (poema, sistema de signos estéticos) se resolve num objeto
expressivo, fictício na maior parte. Portanto,
mesmo em menor número, esses estudos são de efetiva consequência para a
discussão da arte da literatura e servem de visada inovadora inclusive para a
prosa. Nessa perspectiva o fato estético não fica relegado a um plano de
coadjuvância. A aproximação a esse tipo de texto requer uma jogada isomórfica
ligada à fruição. Após determinado momento a interpretação se apresenta como um
reforço da fruição, jamais como seu sucedâneo ou diminuição. De acordo com o
antigo adágio “existem dois tipos de mentes poéticas: uma apta a inventar
fábulas e outra disposta a crer nelas”. A este propósito, o poeta argentino
investigado em Vanguardas em retrocesso,
escreve o seguinte: “Peter, em 1877, afirmou que todas as artes aspiram à
condição da música, que é apenas forma.” A música e outros eventos e seres
sagrados, segundo Borges, “querem dizer algo, ou algo disseram que não
deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma
revelação, que não se produz, é talvez o fato estético”[10]. A
mente prosaica de Sergio Miceli não se dispõe a crer nessas fábulas ou
fruí-las; farejando vestígios em torno às produções das vanguardas, Miceli
tenta recuperar algo adjacente a elas, mas que sempre se perde justamente
porque ninguém compra o que não está à venda. Não há nada a ser revelado. Seu
esforço de interpretação em Vanguardas em
retrocesso é semelhante ao do criado de servir que passa desde os antros da academia para o
mundo aqui fora as iguarias de uma linguagem estranha ao seu próprio apetite.
Desde um ponto de
vista semiótico temos, de um lado, a parataxe das experiências
artísticas das vanguardas latino-americanas: toda uma precipitação para a
analogia, o estranhamento, a forma, a síntese. De outro, a suspicácia sociológica
da hipotaxe discursiva e obediente
de Miceli cujo democratismo vagamente intolerante considera os objetos
de sua pesquisa apenas como meros representantes disso e daquilo e nesse
movimento de tentativa de controle do imaginário parece enveredar mais para a
esquerda do leque ideológico, e assim temos: um pendor para os aspectos
lógicos, a ciência, o “conteúdo”, a análise. Em outras palavras, em relação ao
policiamento hipotático dos scholars estabelecidos,
sempre ciosos de seus acordos e interesses – sejam estes corretos ou não –, a
inutilidade e o escapismo da poesia, da arte, continuarão sendo tolerados, mas
sempre como linguagem sob suspeição.
Jacques Derrida, expropriando
Walter Benjamin, escreve: “Mas o que ‘diz’ uma obra literária (Dichtung)? O que ela comunica? Muito
pouco a quem a compreende. O que ela tem de essencial não é comunicação, não é
enunciação”[11].
De outra parte, para os que, feito Miceli, não a compreendem
(os que encarecem sua pertinência referencial) a obra poética parece dizer
muitas coisas, principalmente aquelas que tais mentes desentranham antes e depois da presentificação mesma da obra em sua integridade
semiótica. Miceli não alcança o durante
irredimível da obra literária, em outras palavras, não se permite ler o que
está de fato inscrito (essa materialidade que inaugura um espaço significante);
não se acerta com esse ser de linguagem a um só tempo passivo e fugidio com que
se defronta o leitor em fruição no momento em que é levado a erguer a
fronte, inclinada, até há pouco, sobre linhas e versos. O que se situa antes e depois do objeto verbal (objeto estético) em sua condição performativa
de coisa fruível é o conteúdo comunicável ou inessencial, algo que não tem
valor senão associado. Uma demão interpretativa que se acrescenta à obra artística,
e como não lhe é intrínseca pode muito bem ser descartada no momento seguinte.
[1] Ronald Augusto nasceu em Rio
Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de
poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo
(1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro
(2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blogwww.poesia-pau.blgspot.com e é diretor
associado do website WWW.sibila.com.br
[2]
MICELI, Sergio. Vanguardas em retrocesso.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 43
[3]
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, s/d. p.
128.
[4] O leitor
não precisaria ficar a par disso, mas Sergio Miceli faz questão de lembrá-lo.
Segue um breve apanhado dos desafios enfrentados pelo sociólogo na confecção de
Vanguardas em retrocesso: (1) em
parceria com pesquisadores argentinos começa em 2003 a delinear “um projeto
ambicioso de intercâmbio”. p. 11; (2) estudar a história social de Borges
exigiu de Miceli “um empenho extraordinário na coleta de materiais
biográficos”, pois a “colossal literatura que lhe foi consagrada barrava” o
tipo de indagação que interessava ao pesquisador brasileiro. p. 12; e (3) “Sem
dispor de salvo-conduto de acesso a esse halo inefável [os universos simbólicos
de uma originalidade irredutível que se entende por cultura nacional], o
observador estrangeiro [o sociólogo diante das vanguardas argentinas] seria
destituído dos códigos e respiros indispensáveis à captura dos segredos”. p.
13. Sergio Miceli conclui dizendo que foi esse “o mais robusto empecilho ao
desígnio comparativo” de Vanguardas em
retrocesso, mas que, pelo visto, foi ultrapassado cum laude.
[5]
WILSON, Edmund. O Castelo de Axel:
estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. São Paulo, Editora
Cultrix, s/d. p. 24.
[6]
Id.
Ibid. p.: 23
[7]
Id.
Ibid. p.: 46
[8]
Id.
Ibid. p.: 50
[9]
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo:
Associação Editorial Humanitas, 2006. p. 17 .
[10]
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas de Jorge Luis Borges,
vol. 2. São Paulo: Editora Globo, 1999. p. 11.
[11]
DERRIDA, Jacques. Torres de Babel.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 36.
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