Notas sobre alguns
aspectos da peça Orfeu da Conceição
de Vinicius de Moraes. A dita “tragédia carioca” foi encenada pela primeira vez
em 1956 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Embora a obra de Vinicius de
Moraes seja, sob vários aspectos, desbravadora, pois o poeta, se antecipando a
muitos autores teatrais, a escreveu para que fosse encenada por um elenco de
atores negros – fato até então inédito – revela, mesmo assim, em sua narrativa,
representações estereotipadas com relação ao negro. Além desse dilema de fundo,
pode-se levar em consideração o êxito de forma com que Vinicius de Moreas,
nesse esforço de recriação do mito de Orfeu, transcultura, em termos de
sincronia, um item do legado clássico para o interior do tempo que lhe cumpria
viver, reinventando-o no cenário de um morro carioca em meados dos anos 50.
Não me parece inviável
uma leitura onde se considere que os termos “tragédia carioca” podem dizer
disfemicamente ou que representem por ausência, por apagamento, os termos
“tragédia negra”. No prefácio ao seu drama Vinicius reconhece a dívida com
relação à cultura afro-brasileira, mas a refere apenas no último parágrafo,
talvez porque julgasse ocioso referir o lastro da cultura negra já que esse
assunto seria, por assim dizer, visível a olho nu. De outra parte, tal
agradecimento, quase como uma nota de pé de página, acaba por ser, em fim de
contas, coerente com a tradição, ainda mais se aceitarmos o critério do poeta
Oliveira Silveira (1941-2009) que, segundo suas considerações, experimentos
como Orfeu da Conceição entrariam na
conta de obra de cunho negrista. Cito alguns exemplares dessa vertente
negrista: os poemas negros de Urucungo
de Raul Bopp; “Irene no céu” de Manuel Bandeira; “Essa Negra Fulô” de Jorge de
Lima. Tais obras, na perspectiva crítica de Oliveira Silveira, são antes
objetos verbais que atendem a uma temática negrista, isto é, experimentos
eventuais de linguagem no percurso textual desses autores que, a rigor, se
prestam a simpatizantes (antipatizantes alguns) do “assunto”. Em outras
palavras: brancos escrevendo sobre negros ou sobre elementos da cultura
afro-brasileira com vistas à ampliação do repertório e do seu discurso de
poder, no sentido em que esse discurso, talvez por ser estético, restituiria a
eles (os objetos, o assunto da vertente negrista) a “dimensão humana”
supostamente usurpada, ao longo do tempo, por uma série de eventos históricos e
sociais.
Portanto, do ponto de
vista da diluição da ideologia subjacente ao tecido verbal e sob certos
aspectos, Orfeu da Conceição, para o
paladar de uma específica recepção contemporânea, pode ser interpretado como um
poema dramático ultrapassado. Em seus versos, formas clássicas de preconceito
racial e religioso com relação ao negro e à cultura a ele associada vêm à superfície da linguagem em vários momentos.
Nesse sentido, a
intenção pretensamente generosa de, como escreve Vinicius no prefácio à peça,
prestar “uma homenagem ao negro brasileiro” por “sua contribuição tão orgânica
à cultura deste país – melhor, pelo seu apaixonante estilo de viver”, estilo que permitiu ao poeta “sem esforço, num
simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza
de um dos divinos músicos do morro carioca”; enfim, não obstante todas essas,
por assim dizer, atenuantes de fundo, a intenção de “fazer justiça”, por meio
da voz dramática, tem algo de patético, pois a conjunção intuída entre os
divinos epítetos grego e negro se revela, ao fim e ao cabo, tão vincada de
superstições e clicherias com relação ao seu objeto estético que acaba por obliterar a possibilidade efetiva de
algum desvelamento a partir da recriação dos signos sincréticos, mitológicos e
poético-musicais mobilizados na fatura da obra.
Evoco, por fim, uma
confissão de Vinicius de Moraes que, de algum modo, faz menção aos seus
esforços de olhar sua circunstância, seja intelectual, seja sociocultural, a
partir de diversa perspectiva. Na advertência a Vinicius de Moraes – antologia poética, lê-se a seguinte confissão
do autor a propósito da mudança apresentada em sua linguagem a partir da década
de 1950 e que se opõe “ao transcendentalismo anterior”, revela o poeta que essa
nova linguagem alcançada indica “a luta mantida pelo A. contra si mesmo no
sentido de uma libertação (...) dos preconceitos e enjoamentos de sua classe e
do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação”. Se
dermos crédito à confissão de Vinicius de Moraes, podemos concluir que a peça Orfeu de Conceição está no bojo desse
movimento de revisão crítica e recusa dos enjoamentos e interdições que
informavam o poeta em seu processo de amadurecimento, seja na dimensão
existencial, seja no aspecto da sua condição de artesão da arte da poesia.
Vinicius de Moraes tentou um salto tigrino do tom elegíaco, entre metafísico e
decadentista, para a concretude corporal do samba e seus filosofemas
presentificados na superfície das palavras da canção popular. Em Orfeu da Conceição esse salto tigrino,
essa ruptura com sua angústia de origem e formação, não se completa. É no seu
cancioneiro que Vinicius de Moraes vai alcançar, mais tarde, os melhores
resultados em função de tal mudança de rota.
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