Ronald Augusto[1]
Podemos distinguir,
esquematicamente, dois tipos de artistas. De um lado, aquele espécime cuja arte
se mantém muito rente à vida e ao real; e, de outro, o sujeito que entende a arte
como uma transfiguração da circunstância, isto é, sua obra nos faz supor uma indisposição
com relação ao real. O senso comum, entretanto, parece disposto a dar mais
crédito ao artista do primeiro tipo. Ao contrário do representante do segundo
tipo, este artista não pode ser um fingidor. O fruidor admira o poeta que suja suas
ferramentas inspecionando os transes do vivido. Assim, o objeto de arte se
transforma num sucedâneo sentimental e público de uma singular experiência
existencial.
Precisei desse preâmbulo
pela seguinte razão: há uma percepção de que a verdadeira arte se confunde com
a vida e isto, bem ou mal, serve de critério para avaliarmos uma infinidade de
manifestações criativas, porém com uma exceção: a literatura negra. Muitos não
aceitam que o qualificativo seja aplicado à noção de literatura, baseados na
crença de que a arte não tem cor. Ora, ao não dar crédito à literatura negra, o
objetor, que deposita confiança na unidade entre vida e arte, cai em
contradição, pois sua posição, que implica a recusa de um eu
enunciador que se assume negro no próprio texto, o fará negar, em fim de
contas, a concepção de que a arte mais genuína é a que confina com a vida. Um
escritor que, além de não dissimular sua condição de negro, resolve tratar em
sua literatura de questões como o preconceito racial ou as veladas tensões
étnicas da sociedade brasileira não seria um espécime do primeiro tipo de
artista? Sua arte não nos faz supor um mergulho radical num
aspecto concreto da existência? O impasse tem a ver com a recepção. E, às
vezes, a recepção, mais do que desinformada, se revela maledicente.
A recente publicação Literatura e afrodescendência no Brasil:
antologia crítica (Ed. UFMG, 2011), resultado da colaboração de 61
pesquisadores de 21 universidades brasileiras e estrangeiras, reúne em seus
quatro volumes um conjunto de textos literários e análises voltados à vertente
negra. Tal vertente se constitui numa forma de canto paralelo ao percurso canônico
das obras estruturantes da literatura brasileira enquanto sistema. Pouco depois
do lançamento deste livro, Ferreira Gullar, representando parte da recepção
maledicente, escreve resenha onde afirma não ter cabimento falar de literatura
negra, porque os africanos que vieram para cá não tinham literatura e que isso
não fazia parte de sua cultura. A polêmica foi grande e frutuosa. E Gullar foi o
maior beneficiado, já que, depois da bobagem preconceituosa que escreveu,
recebeu informações de todos os lados sobre as tradições orais e a riqueza dos
discursos formados a partir de signos não-verbais presentes tanto na arte
antiga, quanto nas diversas culturas do ocidente e do oriente. Ferreira Gullar,
neste episódio bizarro, não reconheceu a importância da cultura oral seja para
o africano, seja para a sua diáspora brasileira. A capacidade de produzir um
discurso literário não supõe a tecnologia da escrita.
Contra tal pano de
fundo é que julgo importante discutir os limites e as virtudes da literatura
negra.
Com relação ao tema, minha atitude tem mais de metalinguagem do que de
afirmação concludente. Uns pensam a literatura negra desde a perspectiva de lances
identitários através dos quais a prática literária se efetiva como testemunho
de verdade racial. Do ponto de vista da criação e da reificação de uma
literatura negra, podemos afirmar que isso se limita com um esforço coletivo e extraliterário
que tem em vista, antes, redefinir um pertencimento etnopolítico, do que propor
uma forma específica de linguagem. É como se a vida tomasse a dianteira,
restando à arte um papel menor. O tópico da literatura negra não deve
ser lacrado às pressas. Exceto, talvez, do ponto de vista de alguma vaidade acadêmica
ou de certa limitada retórica militante, é algo que, a rigor, não tem de ser
resolvido. As tensões etnossociais e políticas às quais estes textos em certa
medida fazem alusão, estas sim, podem e devem ser resolvidas. Mas um poema não
admite solução.
Portanto, antes de qualquer coisa, literatura
negra só pode ser mesmo literatura, isto é, uma forma de discurso que tem sua
autonomia conectada ao campo estético. Essa produção não pode fazer uma aposta
apenas no que é acidental. A este propósito evoco uma passagem de minha convivência com o poeta Oliveira
Silveira (1941-2009), intelectual negro e um dos proponentes do 20 de Novembro,
Dia
Nacional da Consciência Negra. Uma vez, Oliveira me disse que não tinha trauma
nenhum em se deixar reconhecer como um “poeta, negro”, desde que ninguém
desprezasse essa vírgula imiscuída entre os dois termos, forçando uma breve,
porém necessária disjunção. Para Oliveira Silveira, o qualificativo que vem
após a vírgula: negro, gaúcho, concreto, não é, de modo nenhum, irrelevante,
mas, apenas, secundário. Ou melhor, trata-se de uma linha por meio da qual
podemos arriscar uma leitura precária, provável.
A
literatura negra vem se consolidando com rapidez. Há registros de escritores
negros com obras publicadas já no século 18. Em Literatura
e afrodescendência no Brasil: antologia crítica
o interessado vai encontrar um mapeamento surpreendente de poetas e prosadores
negros que permaneciam à margem. A
tradição segue a se atualizar criticamente no presente. É importante lembrar, a
este respeito, o grupo Quilombhoje
que há mais de três décadas tem servido de espaço de lançamento e de discussão
da produção negra (em prosa e poesia) mais recente. Por
outro lado, sempre que me pego
refletindo mais uma vez sobre essa literatura – na perspectiva dos
dilemas contemporâneos –, não deixo de mencionar alguns escritores. Não porque
talvez representem, com suas criações, o sangue novo na corrente sanguínea e,
portanto, reuniriam, digamos assim, as melhores condições para renovar a
vertente negra; não. O que importa para mim é que quando me vejo diante dos
textos destes autores, percebo outras questões criativas. Suas intervenções mais
do que consagrar, mantêm o espaço em construção, aberto a
investigações e revisões de linguagem de toda ordem.
Assim, fazendo um corte
drástico no agora-agora desta produção – pois reservo, à parte, uma série de
autores que, no mínimo, enriquecem o debate –, indico ao leitor os nomes de
Arnaldo Xavier (1948-2004) e Ricardo Aleixo, poetas interessados na
experimentação enquanto conquista e na intersecção entre as linguagens;
Edimilson de Almeida Pereira, cuja poesia é uma vigorosa recriação da episteme afro-brasileira;
e, finalmente, Cidinha da Silva, prosadora refinada que situa seu texto na
nervura do presente, atenta aos ardis das representações e das afecções a que
são submetidos os negros contra um pano de fundo multimídia. Quem está disposto
a ampliar o apetite pela literatura para além do convencionalmente tolerável
precisa ler estes escritores negros.
[1] Ronald
Augusto é poeta,
músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya
(1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No
Assoalho Duro (2007), Cair de Costas
(2012), Oliveira Silveira: poesia reunida
(2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com e é colunista
do site http://www.sul21.com.br/jornal/
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