Pular para o conteúdo principal

No que você está pensando, meu caro facefriend? (revisto e ampliado)



 I Confess,1953, drama film directed by Alfred Hitchcock


Que as escolhas ou decisões (não importa a angulação) são precárias, provisórias, e se nos recusamos a fazê-las só nos resta o eterno e as condecorações de praxe.

Que todos esses escritores que infestam as redes sociais são competentes e manejam muito bem os fundamentos do ofício, mas tais dotes não realçam espíritos superiores, apenas compensam intelectos medíocres.

Que os escritores conectados graças às redes sociais, ou seja, esse coletivo de ativistas propenso a não interpor a menor objeção a um aquecido meio literário forma um campo benfazejo onde prosperou e prospera a ideia – inclusive para que ninguém sofra um surto psicótico – de que não existem mais nem bons nem maus escritores.

Que podemos usar a opção “curtir” caso sejamos informados, por exemplo, sobre a morte de algum dos nossos desafetos.

Que um homem sozinho não deve ser temido nem estimado.

Que, entre outras coisas, o objetivo no facebook é encher o saco de 5 amigo(a)s. E que cada um terá um prazo de 24h para executar 30 flexões ou despejar um poema em sua própria linha do tempo, caso contrário deverá “presentear” quem o desafiou com um livro do Manoel de Barros. E que cada indicado deve amolar mais 5 amigos para cumprir o desafio.

Que, através de um raciocínio sedutor e de emendas feiticeiras, o escritor-seguidor das redes sociais tenta por esse meio persuadir-nos de sua significância, contudo, sem confundir ao menos o crítico atento, ilude-se a si mesmo.

Que muitos querem ir além, dizer mais e fazer mais; e que é fácil dar as costas ao além (a tradição, o mundo dos mortos), de onde viemos todos.

Que mais se escapa do que se desperta do pesadelo da história.

Que é ruim ter muitos amigos brancos, pois começamos a acreditar – em função das sinceras manifestações de afeto e de simpatia aos nossos dramas – que talvez o racismo esteja se dissipando.

Que nós, facefriends, que aqui estamos, por vós esperamos.

Que é preciso solucionar o problema do branco no Brasil, afinal de contas, cerca de 30% ou mais dos brasileiros pertencem a essa etnia.

Que o branco é reticente com relação a assumir sua cor e sua condição de eterno incluído.

Que resolvemos acabar com todas as ideias para acabar com uma apenas.

Que o maior lugar-comum dos últimos tempos é conseguir uma audiência com e/ou posar para uma foto ao lado do poeta Ferreira Gullar.

Que depois que alguém teve a cara de pau de dizer (em público!) uns desaforos a respeito do medalhão, os seguidores deste último de pronto caem em si e confessam: “Ah, pois é, ele também me enoja em uma ou duas coisinhas…”.

Que não curtir é a maior curtição.

Que cada facefriend é uma ilha de tolerância cercada por um mar revolto de reacionários.

Que um novo Rimbaud no Acre ou em qualquer lugar que seja é tão improvável quanto um gaúcho modesto.

Que publicar no “mural” do amigo dileto é o primeiro passo para uma rentável relação corruptora.

Que, depois de um beijo e de um abraço apertado, às vezes também nos batem a carteira.

Que compartilhar o bônus é moleza.

Que suportamos além do tolerável a cólica narcísica do outro.

Que escritores de segunda categoria (e eles geralmente amam versos ditos a plenos pulmões) quando se referem à genitália o fazem como se disparassem uma cusparada.

Que o vicioso da internet é muitas vezes o estrume da virtude dessa rede de reconhecimentos recíprocos (que não pode ser quebrada!).

Que a arte de fazer inimigos não é mais deste mundo.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão ...

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a...

O prazer da leitura tripla

  Lendo Ronald Augusto Poesia de poeta “experimental” convida ao prazer da leitura tripla por Paulo Damin, escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul. “Polêmico”, disse uma colega professora, quando o Ronald passou por Caxias, tempos atrás. Deve ser porque ele é um filósofo. Ou porque comentou a falta que a crítica faz pra literatura. Ou então porque o Ronald escreve versos “experimentais”, ou mesmo experimentais sem aspas. As ideias dele sobre crítica e literatura são fáceis de encontrar. Tem, por exemplo, uma charla literária que fizemos com ele, neste link . O que vim fazer é falar sobre ler os poemas do Ronald Augusto. Sabe aquela história de que é mais importante reler do que ler? Esse é o jogo na obra poética dele. Minha teoria é que todo poema do Ronald deve ser lido pelo menos três vezes. Na primeira, a gente fica com uma noção. Que nem entrever alguém de longe na praia, ou na cerração. A gente pensa: é bom isso, entendi. Vou ler de novo pra entender melhor umas coisa...