Antes de tratar do objeto desta
resenha, isto é, o livro Bala, do poeta Luis Turiba, abro parêntese para
uma breve rememoração (e como se verá mais adiante não nos desviará do foco
inicial), rememoração que diz respeito à alegria que experimentei ao me deparar
com Bric-a-Brac, revista brasiliense dos anos 90 dedicada à poesia e às
demais formas de arte.
Com
um design gráfico atento tanto à experimentação, quanto ao mais alto padrão
visual estabelecido pelas publicações do período, Bric-a-Brac chegava
afirmando o ecumenismo quer no campo estético, quer no campo das ideias. Para
exemplificar até que ponto se entrelaçavam em suas páginas a mestiçagem
cultural e a vocação pan-semiótica, destaco algumas colaborações do número de
dezembro de 1990, vejamos: um poema de Haroldo de Campos; canção de Caetano
Veloso; artigo de Paulinho da Viola; Antônio Risério levantando idéias “Para
uma viagem poético-antropológica”; Carlos Ologunci jogando na mesa os búzios d’
“A influência africana no falar brasileiro”; uma seção de poemas visuais; e,
por fim, entrevista de Mario Quintana concedida à Alice Ruiz. Ademais, o
conselho editorial da revista abrigava, entre outros, o bibliófilo José Mindlin
e o poeta concreto Augusto de Campos.
Bric-a-Brac se abria, portanto, ao traço forte da
tradição viva e à troça da subversão permanente. Neste sentido, sua imagem,
para um olhar de hoje, parece ratificar a tese de que as manifestações
artísticas das décadas de 80/90 foram marcadas, grosso modo, por uma espécie de
ecletismo retrô. Fecho parêntese.
Muito
bem. Mas o leitor deve estar se perguntando, a essas alturas, o que o poeta
Luis Turiba tem a ver com isso? Tudo, meu caro. Bric-a-Brac foi
concebida, editada e mantida por ele, e é de mencionar, ainda, sua participação
na concepção das capas e na instigação de temas à equipe de colaboradores da
revista. Luiz Eduardo Resende e Lucia Miranda Leão foram os outros editores.
Mas
se Bric-a-Brac foi pós-moderna, isto é, dá-se a ler, agora, como signo e
produto de uma época que entroniza o relativismo como polifonia, a poesia de
Luis Turiba, não obstante lidar criticamente com ressonâncias desse estado de
espírito, representa um deslizamento sobre a superfície desse e de outros ismos,
retidos na sucessão conflitante de tempos e espaços. Com efeito, um poema
também se define historicamente e esta divisa não é recusada por Turiba. No
entanto, consciente da efemeridade da experiência presente, Luis Turiba lê ou
re-inventa o mundo por meio de sua linguagem-lábia transtemporal. O poeta menos
se arraiga no tempo do que o atravessa. À primeira vista sua poesia coincide
com o que parece ser: imemorial, bebe de águas egípcias; é transatlântica,
estabelece trocas entre o yorubá e o nheengatu; moderna; antropofágica;
concreto-tropicalista; enfim, o melhor da panglossia. A poesia de Bala
parece, mas não se confina apenas a estes estilemas. Na verdade, salta, num
passo de brincante, sobre tudo isso. Poesia do encontro Hermes-Exu, divindades
do trânsito, do translado de signos, das línguas e dos escambos
sócio-culturais. Poesia do cyberspace como holocausto aos deuses que presidem a
zona de fronteira entre o aquém e o além-túmulo.
Neste
livro, Turiba investe na tematização dos “tempos híbridos”. De minha parte,
gosto de vislumbrar em seus poemas a tentativa de fazer o tempo experimentar
sua húbris: ele se converte em signo
de um presente eterno que se anula, estanca, já mudado em espaço, território.
Um aqui mais do que um agora. Em Bala o presente encarna um lugar sem
margens, a arena de mundos possíveis que se entrechocam, círculo, a um tempo,
vicioso-virtuoso.
O
conjunto de poemas contidos entre as capas de Bala se resolve numa épica
fragmentária. Encenação de migrações, cruzamentos de gentes e culturas. Mas
atenção: encenação, esta, plasmada nos procedimentos mesmos da linguagem.
Poesia permeável à falação do mundo. Turiba, portanto, também sabe se
contrapor, quando necessário, ao Mallarmé da esterilidade que dizia fumar
apenas para lançar um pouco de fumaça entre ele e o mundo. Bala, ao
contrário, se mostra fecundo, porque atravessa e é atravessado pelo cinema
falado dos “corações e mentes da corrente planetária”.
Um
desdiscurso-livro ou um livro de transviagens. Verdadeiro bloco de anotações e conotações
corrosivas num job de campo sobre o
acabar-começar de ideologias e culturas díspares em processo de fusão. Bala,
fabulação cujo nascedouro-sumidouro localiza-se no vocábulo-ideia sempre
fora do lugar, que enche as medidas, para desespero da mentalidade
logocêntrica. Segundo Turiba, com os poetas-bebês, “desaprendemos a logística
da sintaxe e criamos as tais desequações lingüísticas que ficam zoando por aí”.
Neste
livro tudo está no seu lugar e tudo transborda, graças a Oxalá. Rio em estado
de carnaval mastigando suas margens, o texto deste Luis Turiba heraclítico
parece querer inundar a vida de linguagens, com a intenção de que ela venha à
tona do nosso desejo, exsurja sob outra roupagem dessas águas sempre
recomeçadas.
De
acordo com Décio Pignatari um bom poema fala de tudo e de nada ao mesmo tempo.
Por outro lado, o poema não é senão linguagem. A flor ausente de todos os
buquês é a palavra flor. Turiba está ligado, ele sabe o que se esconde
no avesso do poema, tanto que, em “Tecnotribos 2072” (pg. 97), cita a seguinte
passagem extraída do livro Arco e a Lira, de Octavio Paz: “O poema é uma
máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra
humana”. Erosão e eros da linguagem, para Luis Turiba a poesia é uma
ferida-fissura que não sara nunca. Mas a “bala perdida encontra [o] coração
solitário”, carga de fogo que afugenta o tédio por um breve momento.
17/10/05
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