Ronald Augusto[1]
No poema “Arte de amar”
Manuel Bandeira afirma que “os corpos se entendem, mas as almas não”. Bandeira
vislumbra tal desfecho para o poema porque simplesmente as almas são
incomunicáveis e só encontram satisfação em Deus. O pano de fundo é nietzschiano.
Bandeira propõe a reversão moral da consagrada antinomia entre corpo e alma no
interior do pensamento ocidental. O poeta trata o corpo com uma profunda
compaixão. Mas o estilo da suspeição que Nietzsche nos legou também se projeta sobre a metáfora do corpo.
Qualquer corpo, hoje, já não é mais aquele sugerido no poema modernista. Anatomia da pedra & tsunamis,
em certa medida, faz alusão a esses dilemas. Mas antes de seguir com essa
leitura, preciso abrir um parêntese.
Ainda que Rubens da
Cunha, em seu prefácio, nos faculte a suposta chave léxica ao sentido da obra, a
saber, que entre suas capas se encontram poemas nascidos ou motivados a partir
do trágico terremoto ocorrido no Haiti em 2010, ainda assim, não é sobre essa
referência que recai meu interesse. Não digo que a informação seja irrelevante,
apenas que ela é secundária e, de alguma forma, talvez delimite excessivamente
o campo imagético pretendido por Marco Vasques em Anatomia da pedra & tsunamis.
Justifico essa minha
impressão através de um dado bem objetivo: a única referência mais direta ao
assunto identificado pelo prefaciador aparece nos dois versos finais do poema
da página 42, vejamo-lo: “porque estou/
em tua geografia/ acidentada/ aterrado/ no cemitério de cimento/ de Bel Air”.
Ao poema se segue uma nota de rodapé informando que Bel Air se trata de uma
favela localizada na região central de Porto Príncipe, Haiti. De resto, tudo é
alusivo, metafórico e metonímico na obra em questão de Marco Vasques. Não estou
cobrando ao poeta um verismo relativamente ao assunto que nos é revelado na
antessala da fruição.
Com efeito, prefiro
acentuar o valor desse movimento de assédio largamente expansivo a um feixe de sentimentos e quadros
diferidos de uma situação que se materializa aos olhos do leitor via linguagem.
Enfim, não fora pelo prefácio de Rubens da Cunha, o leitor não teria a menor
ideia desse possível sentido subjacente à Anatomia
da pedra & tsunamis. Em função disso, para o bem ou
para o mal, o campo semântico de metáforas como “tijolos tristes na pele”; “carrossel
de escombro”; e “cemitério de cinza”,
entre outras, resta mais restrito. Grosso modo, há uma leitura decidida e outra
que é indecidível; fica a cargo do leitor aceitar esta ou aquela chave de
leitura que lhe é oferecida ou abandonar-se sem tutela à deriva semântica. Fecho,
aqui, o largo parêntese.
Quero dar
prosseguimento, agora, ao tópico da imagem do corpo e suas fraturas em Anatomia da pedra & tsunamis. Em
muitos momentos, durante a leitura dos poemas de Marco Vasques, me vinham à
mente a pintura de Francis Bacon e o simbolismo hard de Augusto dos Anjos. E esse ideograma se conjugava e se
expandia com os desenhos de extração punk
de Carol Silva em diálogo com os poemas do livro. Esse compósito de informações
sígnicas na representação do corpo acaba pondo em questão aquela compaixão
modernista com relação ao corpo e sua imagética, isto é, toda e qualquer
possibilidade de entendimento – seja entre corpo e alma, seja entre alma e alma
ou corpo e corpo – sucumbe frente à máquina da história dos genocídios e do
acaso da natureza.
Em Anatomia da pedra & tsunamis o corpo é presentificado por meio
de uma suspeição, a um só tempo, estetizante e quase sem compaixão: “na garganta/ ecoa a voz/ de todos os túmulos”;
“mastigo/ o jardim do desespero”. Os
poemas de Marco Vasques rivalizam fortemente com a linguagem pictórica em razão
dessa apetência pelo figurativo, ou melhor, por um tipo de representação
transfigurada (ou “desfigurada”, por isso a menção a Francis Bacon) da figura
humana, cujos esboços fantasmáticos de que se serve para metaforizá-la,
encerram índices e rasuras exasperantes, sintagmas dolorosos sobre um fundo,
por assim dizer, sujo de brancura derrisória; o vazio da página branca onde
Carol Silva faz suas escarificações fende-se engolindo esboços corpóreos. E o
que pode haver de grotesco na imagética de Vasques (na perspectiva de
uma forma expansiva) guarda alguma relação com os estilemas da poesia de
Augusto dos Anjos que, em geral, são sintetizados em termos de uma retórica do
desejo necrófago, do elogio e da filiação ao cadáver-carcaça, mas um cadáver
que fervilha trazido novamente à vida pelos vermes, nossos hipócritas irmãos,
nossos iguais.
Uma das personae que o poeta de Anatomia
da pedra & tsunamis afivela sobre o próprio rosto se afirma, a certa
altura, como “(...) o incêndio/ de todos
os afogados/ o navegador de ruínas/ a engolir o vômito”. As camadas da
linguagem sobre as quais assentemos nossa interpretação do real assumem um
arranjo inesperado graças ao sismo levado a efeito em Anatomia da pedra & tsunamis.
Marco Vasques
recria, tanto em seus poemas, quanto em seus lisérgicos fragmentos de prosa
poética, a rotina sórdida e infernal da transeunte condição humana confinada
nessa mecânica animal da sobrevivência e da corrupção do corpo.
[1] Ronald Augusto é poeta,
músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões
Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do
Visitante (2013). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com
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