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translúcido na opacidade passageira



A máxima estilística do escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing, segundo a qual “um livro grande é um livro mau”, deve ser levada em consideração, o mais das vezes, além de sua imediata ironia. Se, por um lado, para a prosa de mero entretenimento a máxima talvez não faça muito sentido, pois neste caso o que está em causa é conceder ao leitor de histórias um passatempo largo e deleitoso, por outro lado, no que diz respeito à poesia, a mesma máxima, aponta para duas coisas essenciais ao gênero e que, segundo Pound, são: concentração e linguagem carregada de significado ao máximo grau possível. A rigor uma se entrelaça à outra de modo inextrincável. Além disso, o leitor experiente sabe que é mais fácil tolerar o livro de um prosador medíocre do que o de um poeta também medíocre. Na prosa (tendência à redundância) os defeitos se diluem; na poesia (tendência ao signovo) os defeitos se avolumam. Portanto, em ambas as situações o prosador está sempre em vantagem.
O fato é que devido a essa extrema compressão de meios e de sentidos, um poema acaba se transformando em um artefato verbal semelhante a um buraco negro; de algum modo o poema – essa coisa infinitamente compacta – arrasta para o seu centro o que gravita nas proximidades, e por ser uma espécie de deformação do real causa um colapso semântico no leitor.  Por essa razão muito tempo de exposição a esse tipo de linguagem pode ser fatal.  A extrema ambiguidade do poema – ambiguidade aqui considerada em termos virtuosos – se transfere para o próprio leitor. Um bom livro de poemas começa por ser um livro breve; mais ou menos três dezenas de poemas. Por seu turno, o leitor se multiplica em controversas personae para fazer frente à radical elipse verbal que lhe é oferecida em tal conjunto de poemas. Então, o poeta pode dizer e diz:

não sou eu que construo
meu retrato em linhas
abertas (...)

Agora já parece estar claro ao leitor que algumas coisas afirmadas linhas acima dizem respeito a Translúcido – e acho que dão conta de suas virtudes –, livro de estreia de João Pedro Wapler. Com efeito, a favor de Translúcido o que se pode constatar de mais simples e fundamental é a percepção de seu autor da noção de que a qualidade de um livro não pode ser presumida da quantidade de páginas, quer para mais, quer para menos. Pois não é o caso que João Pedro Wapler – ainda que nos oferte um livro magro e poemas-síncopes – aposte, por exemplo, na ultrapassada vaga do haikai leminskiano, ou seja, como se ele desse uma piscadela de olhos à quantidade de páginas – aqui, para menos – concedendo a isso o caráter de papel-moeda ou de valor real para a poesia e, de resto, para a literatura. O breve, porém grande livro, Translúcido, carrega em seu centro aqueles traços que a visão poundiana identifica como essenciais à boa poesia: concentração e linguagem carregada de significado. A qualidade do ambíguo, que esse livro atualiza de modo preciso, cobra amorosamente do leitor uma participação colaborativa. Embora a responsabilidade de João Pedro Wapler sobre seus poemas se encerre, paradoxalmente, no momento da publicação de Translúcido, é possível que ele, como todo poeta, se dê por satisfeito se o leitor desprezar a moral social da significação que, segundo Barthes, exige do poeta “uma fidelidade aos conteúdos, enquanto ele só conhece uma fidelidade às formas”.

(...) sou apenas a voz
de uma paisagem em coalizão
constante

A brevidade que João Pedro Wapler alcança realizar em Translúcido tem menos relação com o mínimo ou o pouco, do que com a condensação e a destilação. Por meio desse verdadeiro estilicídio imagético, o poeta extrai da substância movente e insubordinada da fala coloquial objetos de linguagem que se bastam a si mesmos. Os poemas de Translúcido, todos sem títulos, são críticos por definição e o são seja intrinsecamente, seja extrinsecamente. Isto é, a poesia de João Pedro Wapler põe em causa tanto os limites e as virtudes do gênero, como metaforiza lances de corrosão à moral social circundante.

a margem decai

da coxa 
lisura 
da besta travestida na calçada
lambada 
de frente pra garotinha
surrealismos
no nó do acaso 



Assim, tendo por base o canto falado das cidades e essa dupla determinação crítica, Translúcido consegue vencer a aparente intransitividade em que quase se consome a si mesmo. A interrupção elíptica obtida em cada poema e em cada verso – essa sensação de fracasso semântico que talvez o leitor experimente – é corolário de uma determinação, não se trata de um escolho que está no caminho de algo e que obsta a linha e a verso, não; tem a ver, antes, com o que é próprio dos constituintes estéticos e políticos do apetite de linguagem de João Pedro Wapler, esse leitor pertinaz de si e do mundo.
Não é novidade para ninguém que um poema, em suas articulações compositivas, incorpora achados, efeitos fônicos, trocadilhos, diatribes de sentido e som, enfim, esses elementos que Roman Jakobson chama de “equações verbais”. Um poema pressupõe tais insumos ou escapes, mas não se esgota neles.  Translúcido é um livro que reduz essas equações ao essencial. O poeta se serve desses recursos como que inaugurando-os e exaurindo-os na perspectiva de que cada poema ganhe sua própria relevância inventiva. As metáforas e os achados são em vista de um objetivo mais focal, a saber, lograr bons poemas. João Pedro Wapler, por um lado, tem em mãos e materializa com precisão algumas dessas equações e, por outro lado, convence com excelentes poemas e pequenas prosas constelares.
Translúcido está, portanto, a espera do seu leitor, mas, ao mesmo tempo, a linguagem contida entre as suas capas tem a capacidade de inventá-lo.  Ainda que o estado de espírito do nosso tempo não compreenda muito bem a leitura lenta e sobrecarregada de um leitor complexo e refinado, já no que toca à poesia, é esse tipo de leitor, entretanto, que importa, ainda mais quando o que está em causa é a permanência do gênero, bem como a dinâmica de uma tradição em movimento.
Finalmente, devo testemunhar que é um prazer acompanhar o poeta João Pedro Wapler lançando, pela primeira vez, os seus dados – entre fílmicos e aforísticos – à deriva do tempo e da fruição. Sua poesia estreia através de uma translucidez sem receio da passageira opacidade de que se serve, pois, entre outras coisas, visa a dizer, por exemplo:

no alarde das dobras
a imensidão
sempre é mais carente

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