Pular para o conteúdo principal

A indústria do vanguardismo pós-tudo





[joan brossa e um de seus poemas visuais]


Cada vez mais me parece interessante experimentar uma suspeita reflexiva com relação a uma ideia que, aqui e acolá, insiste em aparecer em alguns textos ou comentários críticos. Trata-se da ideia que estabelece similitudes entre vanguarda e progresso. Um vício diacrônico, além de messiânico, serve de nutrimento a uma noção de vanguarda enquanto conquista de territórios, acúmulo de feitos num ensaio de totalizações. Movimento que visa a uma etapa final ou a um éden. Vanguarda que se apresenta como ponto de otimização da história. Devir utópico calcado sobre linearidade progressiva, causal. Um dogma: a vanguarda não corre o risco de infectar-se com o vírus do retrocesso. Talvez no âmbito da estratégia dos exercícios de guerra, ou mesmo na arena da politicagem estético-literária, tudo isso ainda faça algum sentido, pois aperfeiçoamento pressupõe a aceitação de exclusões e obsolescências cujo questionamento — a bem de um “mundo transformado”, digamos, para melhor —, é deixado de lado por tempo indeterminado.

Mas o que quer dizer aperfeiçoamento? Neste caso, estaria a se ratificar uma noção de progresso, quem sabe similar àquela que se utilizava para ordenar o concerto das nações, mas, agora, aplicada a frio, à linguagem da poesia ou das artes? Se, por exemplo, a poesia concreta fosse o aperfeiçoamento de algo — supondo que déssemos crédito a isso —, só o seria, mesmo, da poesia de Mallarmé, da poesia de Oswald de Andrade ou da de e. e. cummings, pois aí, sim, ela poderia ser apresentada, em certa medida, como a culminação ou o resgate constituídos, na verdade, a partir do desempenho diferenciador e progressivo desses autores que lhe são anteriores ou precursores. Por outro lado, a vanguarda poética das décadas de 1950/60 não pode ser o aperfeiçoamento da poesia de, por exemplo, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, nem de certas facetas de Manuel Bandeira, e nem mesmo de um ou outro experimento menos feliz de Carlos Drummond de Andrade. Aperfeiçoamento talvez só venha a fazer algum sentido na linha estreita da mesmidade. Nestes casos citados acima, não se trata de modo algum de aperfeiçoamento — supondo, ainda uma vez, que concordássemos com a noção —, mas, antes, de ruptura ou de pura e simples contraposição.

No que toca a essas questões, prefiro imaginar um quadro de tensões de perspectivas, propostas de linguagem em confronto. Formas e poesias em conjunções e disjunções sincrônicas. Não existe progresso. O limbo experimentado pela poesia de Jorge de Lima (que considero um fato lamentável) pode ser revogado a qualquer momento. Outros aguardam o retorno triunfal ao nosso convívio da obra de Cassiano Ricardo. E se isso vier a acontecer, não significará, necessariamente, involução. A poesia se desdobra numa rede de conotações e o leitor-poeta se comporta como o administrador das intraduzibilidades e das eventuais reabilitações inerentes à tarefa da leitura crítica e desobediente.

O experimentalismo ou o vanguardismo, como conceitos, perdem força. Agora, não são senão possibilidades de performances dentro de um determinado repertório oferecido pela tradição. A propósito dessas questões, posso evocar o nome de Joan Brossa (1919-1998). O pensamento-arte do poeta catalão representa à saciedade a velha-guarda da melhor vanguarda fazendo maravilhas com o mínimo de recursos. A “arte-inicial” contra a arte-final, finalista e financista. Nada de computadores e distorções de letras, esses engodos (quando incorporados às pressas como insumo ao estilo) típicos de uma confiança ou de um entusiasmo, ao fim e ao cabo, naïf nos poderes podres de maduros que marcam a ultramodernidade narcisista. Vírus da virtualândia. Brossa, em termos de temperamento criativo e com seu sorriso carrolliano, era mais dada que surreal. Espancava o saco diáfano da seriedade artística. Dizia que a nossa não é uma época multimídia, mas multimerda. Seus poemas recusam abordagens conclusivas ou explicações poética ou pretensamente corretas. Suas prestidigitações poético-visuais também vão a contrapelo da voga contemporânea, no sentido em que não dão a mínima importância para a necessidade de guarda-costas travestidos de curadores ou de simplórios mediadores sempre sacando de suas algibeiras uma dica de “leitura” com vistas a acalmar a angústia do observador frente à obra-cacto e sempre intratável. O humor esturricado de Joan Brossa, humor de poucos amigos emulatórios, tem mais a ver com Buster Keaton do que com Charles Chaplin.




[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Mnemetrônomo (2014). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a...

Cruz e Sousa: make it new

Ronald Augusto [*]   Falsos Problemas “Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! Porque és a escalpelante ironia da formosura, a Sombra da aurora da carne, o luto da matéria doirada ao Sol...” Eis aí, talvez, o indispensável Cruz e Sousa expondo - à sua maneira ou a quem tiver olhos para enxergar - o âmago daquilo que alguns estudiosos de sua obra consideram a “nota brasileira” do seu simbolismo, a saber, a condição de negro. Este recorte metonímico do poema em prosa “Psicologia do Feio”, que integra o livro Missal (1893), dá uma pequena amostra de quão abrangente é o estrato semântico a movimentar os dilemas e estilemas crítico-criativos de Cruz e Sousa. O Feio representa, a um só tempo, vetor ético e estético. O poeta opera com uma variante do motivo do artista maldito que vai se desdobrar no demiurgo algo monstruoso - porque dotado de “energias superiores e poderes excepcionais” que, no desmedido de sua experiência (húbris), transformam-se em verdadeiras ofensas co...

O prazer da leitura tripla

  Lendo Ronald Augusto Poesia de poeta “experimental” convida ao prazer da leitura tripla por Paulo Damin, escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul. “Polêmico”, disse uma colega professora, quando o Ronald passou por Caxias, tempos atrás. Deve ser porque ele é um filósofo. Ou porque comentou a falta que a crítica faz pra literatura. Ou então porque o Ronald escreve versos “experimentais”, ou mesmo experimentais sem aspas. As ideias dele sobre crítica e literatura são fáceis de encontrar. Tem, por exemplo, uma charla literária que fizemos com ele, neste link . O que vim fazer é falar sobre ler os poemas do Ronald Augusto. Sabe aquela história de que é mais importante reler do que ler? Esse é o jogo na obra poética dele. Minha teoria é que todo poema do Ronald deve ser lido pelo menos três vezes. Na primeira, a gente fica com uma noção. Que nem entrever alguém de longe na praia, ou na cerração. A gente pensa: é bom isso, entendi. Vou ler de novo pra entender melhor umas coisa...