Ronald Augusto[1]
Onde Ricardo
Portugal, afivelando algumas personae
sobre o próprio rosto, diz sempre bem, mesmo quando maldiz, e doa a quem doer.
Assim eu sintetizaria A face de muitos
rostos caso o leitor me solicitasse tal obséquio.
Com efeito,
através dessas máscaras ouvimos soar virtualmente, por exemplo, a dicção de um chinês
que conhece além do tolerável a melopeia das cantigas d’amigo e da chanson provençal; o murmurar de um
intelectual que concede que o Brasil até pode se dizer pós-colonial, porém, que
ainda está longe de ser uma sociedade pós-racial; o resmungo de um russo
apreciador do fine excess da cachaça;
a elegia de um gaúcho ulisseida que quanto mais se aproxima de sua grande pequena
capital mais se afasta dela. A face de
muitos rostos, uma poética
cambiante e multicultural. O périplo crítico sobre uma carta geográfica pessoal.
Mas o poeta,
graças a uma consciência luciferina, também se vê implicado na arenga com que
desfaz as contrafações ideológicas e estéticas do nosso tempo. Já que o difícil é apontar essa dureza e a
impertinência do riso sarcástico contra si mesmo. Felizmente, quanto a este
quesito, Portugal também não deve nada aos seus precursores da lira maldizente,
pois ele, a plenos pulmões, desconta e canta:
a memória que se esfarela como pão
velho
retirado das bocas famintas que
repetem
a fala moderada mordiscante reverenda
a fala oficial referendada entre
velhacos
a moderna mentirinha a módicos preços
De fato, Ricardo
Portugal – que também é um excelente tradutor de poesia[2] – presta
um respeito crítico tanto à tradição, quanto ao estatuto da influência. Em meio
ao hard (o duro) da panglossia de
Portugal, materializada em lira maldizente, há rasgos de um alento soft (o suave). Por essa razão dialógica,
mas à diferença do português Jorge de Sena que
canta em um dos seus poemas: “Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser
hábito./ Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,/ quando fico triste
por serem palavras já ditas/ estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos”,
Ricardo Portugal se lança à poesia não como hábito, porém como conquista; e sua
disposição criativa indica que não é a poesia que vem teimosa lamber-lha a
face, mas é ele que, teimoso tal qual o fauno mallarmaico assediando ninfas, é
ele que se persigna perseguindo a poesia. A face de muitos rostos evoca
um percurso que hesita decidido entre o remoto e o atual: o léxico precioso (à
maneira de Odorico Mendes) e o desleixo em jogo de corpo joco-sério (ao modo
tropicalista).
Ricardo
Portugal incorpora à sua linguagem a medida adequada da estratégia da
autoinvestigação drummondiana – o poema do ego
scriptor – que é sempre coextensiva à crítica ao estado de coisas de um
tempo e de um lugar determinados. Em A
face de muitos rostos o poeta alcança essa condição em que a poesia tanto se
define historicamente, quanto sugere ao leitor que grande parte do seu encanto é resultado de um trabalho
exaustivo sobre a sua matéria prima, a saber, a palavra e o silêncio.
Esse conjunto
desassombrado de portogalogramas
revela uma poesia conquistada à custa de anos de estudo vagabundo, de leitura
de prazer e de uma constante prática corpo a corpo com a linguagem e que lança
Ricardo Portugal de encontro aos limites discursivos do mundo e às suas
correlatas imposturas. Se é perceptível que A
face de muitos rostos põe em cena um poeta que sabe distinguir, por
exemplo, uma sextina de um soneto, ou identificar insumos estéticos tanto nos
traços fonológicos, quanto nos grafológicos, também é verdade que esse
maldizente “livrim desmilinguido” sabe desferir golpes agudos no coração da
usura e da “vidinha burra”, essas dimensões da experiência borradas pela
altissonância de homúnculos às vezes travestidos de poetas.
Ricardo
Portugal não se ressente com o fato de que todo poeta está sempre in
progress. Neste sentido, A face de
muitos rostos nos adverte que a formação acadêmico-burocratizante e a
consagração acrítica numa atividade equívoca como a poesia, terminam sendo, ao
fim e ao cabo, deformantes. Portugal escreve contra a (de)formação escolástica
e põe em questão o poeticamente correto, pois essas estâncias talvez sejam
úteis apenas para ratificar a existência ou a importância do nosso “censor
interno” (W. H. Auden dixit) numa situação que nos seja exigido um ato
de julgamento em acordo com as determinações do sistema literário. Mas Jorge Luis Borges
diz que “o poeta não condena nem absolve”.
Perante as mesmas valho um Severino,
errante erva a ventos e nordestes.
Sigo barrado às portas do castelo,
fico a admirar-lhe a torre
inacessível.
(...)
Poesia é uma caixinha de surpresas
à classe média da churrascaria.
Os vícios e as virtudes
da poesia moderna e contemporânea poderiam ser resumidos ou ter sua origem num
ponto apenas, que é o que concerne ao verso livre. Ao sairmos pagados e
revigorados da leitura de A face de
muitos rostos não duvido que acabemos concordando com algo que subjaz à presente
obra de Portugal, isto é, que, em fim de contas, se trata de um exagero
insistir no slogan segundo o qual o “ciclo histórico do verso está encerrado”.
Cada poema de Ricardo Portugal parece afirmar por meio de ritmos persuasivos
que o verso livre modernista — que, diga-se de passagem, a maioria pratica
ainda imperitamente sem fazer vacilar suas contradições e possibilidades
constitutivas — só experimenta mesmo um suposto momento de estagnação na
prática daqueles poetas que operam sobre o verso a partir do corte aleatório,
agindo como convencionais versemakers da fratura, da fragmentação. De
outra parte, em A face de muitos rostos,
o fruidor tem a chance de ouvir assonâncias (toantes que impõem ao verso sua
música surda), reiterações anafóricas, respiros mais amplos (de dez a doze
sílabas métricas), enfim, toda uma logopeia dançante que resulta em uma estrofe
exemplar como essa:
e tudo o que queria era ser um outro
à distância livre de tal semelhança,
homem polido de prosaica elegância
homem fraco de cotidiana coragem
homem pequeno
à resignada grandeza
Diante da poesia de Ricardo Portugal, boa
parte da produção dos seus iguais, quando não se resigna à indiferença com
relação aos valores do verso (livre ou medido), consegue quando muito nutrir uma
estúpida desconfiança acerca de sua eficácia poética. Enquanto irmandades de
poetas apuram suas ferramentas no aproveitamento acrítico desse verso fake
resolvido na estabilidade de uma constante e afetada elipse sintática, Ricardo
Portugal não perde a cadência, o andamento, isto é, não veda os sentidos a essa
música que vem de outros poemas velhos, deslembrados heuristicamente na nervura
da redescoberta e à margem do agora-agora.
[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente aqui no http://www.sul21.com.br/jornal/
[2] Ao lado de Tan Xiao, Ricardo
Portugal traduziu, organizou e apresentou a Antologia
da poesia clássica chinesa – Dinastia Tang, obra importantíssima publicada
em 2013 pela Editora Unesp.
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