Ronald Augusto[1]
O diálogo platônico –
mimese da “ação de dialogar” – enquanto forma literária filosófica constitui, talvez,
o legado mais acabado da tradição do pensamento grego que, por seu turno, serve
de matriz importante à filosofia do ocidente. Grosso modo, enquanto o que nos
resta das obras, tanto dos que precederam a Platão, quanto dos que foram, mais
ou menos, contemporâneos do filósofo, são referências ou fragmentos, dele,
entretanto, temos um corpo expressivo de diálogos cuja autoria lhe é atribuída
sem grande controvérsia. Mênon,
objeto deste comentário breve e incompleto, é um diálogo ainda sob o impacto do
pensamento e do estilo socráticos, isto é, não faz parte da produção
considerada madura de Platão.
É importante frisar
também em relação à obra em tela que a empreitada tradutória de Maura Iglésias
parte, à primeira vista, de dois pressupostos, a meu ver, acertados: de um lado
o idioma de partida (o grego) se projeta sobre o idioma de chegada (o
português), isto é, ainda que muitas das soluções encontradas pela tradutora
para verter o diálogo Mênon ao
português sejam lastreadas por semelhanças sintáticas entre as duas línguas,
pode-se dizer que o resultado evoca um português helenizado; e de outro lado, a
tradução não se afasta da percepção de que aquilo que Platão-Sócrates diz/escreve (“conteúdos teóricos”) não
está ligado acidentalmente ao modo como
(“formas linguísticas”) o filósofo efetivamente diz/escreve. Assim, os
problemas filosóficos apresentados por Platão através da voz de Sócrates são
inextrincáveis da forma literária – no caso o diálogo – que assumem. Vamos, então, ao comentário.
Em Mênon o que está em causa em seus primeiros momentos é investigar
se a virtude é coisa que se ensina. Com efeito, o diálogo se desenvolve a
partir dessa indagação proposta por Mênon. E pelo fato de que o jovem
interlocutor de Sócrates resolve iniciar a discussão por esse tópico
suspeitamos de que ele parece saber o que é a virtude, pois suas questões se
referem, antes de qualquer coisa, ao ensinamento ou não da virtude, isto é, se
é possível ou não ensiná-la e se é algo que advém aos homens por natureza.
Entretanto, Sócrates não dispõe de uma resposta definitiva sobre a questão “se a
virtude é coisa que se ensina”[2]
– Sócrates, inclusive, não possui resposta sobre o que quer que seja – para
oferecer a Mênon, e nem parece disposto a encontrá-la. E, assim, ele arremata:
exceto Górgias, talvez ninguém tenha a resposta. Com esta afirmação provocativa,
Sócrates já antecipa algo do teor da crítica que fará ao final do diálogo ao
círculo de poder a que pertence o influente Mênon. Em seguida, Sócrates, no
movimento do diálogo, propõe a Mênon, seu interlocutor, que a pergunta seja
formulada em outros termos, a saber: “que é a virtude?”.
Aos poucos, como
resultado da vertiginosa técnica ou da “bruxaria” argumentativa de Sócrates que
parte da noção de que, a rigor, não sabemos o suficiente sobre as coisas a
ponto de emitir qualquer juízo sobre elas e, portanto, é preciso perguntar com
apetite (seja a outrem, seja, principalmente, a si mesmo), o que ocorre é que
tanto ele quanto seu oponente e, além disto, o próprio leitor do diálogo – que
se trata de um personagem implícito –, acabam por esbarrar em aporia e, de
repente, se encontram em uma estiagem de ideias e de certezas. O diálogo
desemboca no campo de questões epistemológicas. A definição da virtude não é
alcançada; além do mais, o raciocínio por hipóteses de Sócrates interrompe seu
percurso com a conclusão de que a virtude não pode ser aprendida nem ensinada
porque não há mestres, portanto, não é conhecimento ou ciência, pois se assim o
fosse, seria coisa que se ensina. E qual a estratégia engendrada por Sócrates
para sair da aporia?
Com efeito, Sócrates
entende que para começar o processo de aquisição de conhecimento é como que
indispensável deparar-se em aporia, mas desde que o sujeito implicado tome
consciência de que quando julgava que sabia, na verdade não sabia. Em 84b (checar
página 59 da presente edição), como resultado das indagações-teste que Sócrates
faz ao escravo para tentar provar que conhecimento seria rememoração, lemos o seguinte: “Agora porém já julga [o escravo]
estar em aporia, e, assim como não sabe, tampouco acredita que sabe”. Para
Sócrates o escravo “está agora melhor a respeito do assunto que não conhecia”.
Da mesma forma a aporia
a que chegaram Sócrates e Mênon (e o leitor) é, também, essencial ao
aprendizado e ao conhecimento, pois os fez cientes de que não sabiam e, por
outro lado, pode fazer com que agora, efetivamente, tenham prazer em procurar a
resposta apropriada. Antes desta verdadeira crise epistemológica que é o estado
aporético alcançado, diga-se, por meio de uma determinação – isto é, essa simulação de uma hesitação ou
contradição de cunho cético a propósito daquilo que se pretende afirmar ou
negar – e
não por acaso, é fácil acreditar, segundo Sócrates, tanto diante de algum
interlocutor quanto diante de muitas ocasiões, que estamos falando com
propriedade a respeito do que quer que seja. Porém não estamos de posse de
nenhum conhecimento, apenas ignoramos, de fato, que ainda não sabemos.
De acordo com o exemplo
proposto por Sócrates, quem sabe, porque conhece por experiência direta, o
caminho para Larissa, pode guiar corretamente, mas alguém que tendo a opinião correta
– sem jamais ter percorrido este caminho e tendo aprendido por meio de
informações obtidas de outrem – sobre qual é o caminho para a mesma localidade,
este também pode guiar corretamente. Logo, Sócrates complementa “(...) a
opinião verdadeira, em relação à correção da ação, não é em nada um guia
inferior à compreensão”, isto é, à ciência. Não apenas a ciência (o
conhecimento) serve de lastro seguro à ação correta, mas também a opinião
apoiada em bases verdadeiras é capaz de fazê-lo. Em outras palavras, ainda que não
seja ciência (conhecimento, isto é, o que pode ser ensinado) a virtude é algo
que se relaciona à opinião verdadeira. De acordo com Sócrates, ter “a opinião
correta sobre as coisas de que o outro tem a ciência, acreditando com verdade
embora não compreendendo” não torna inferior a quem assim se comporta
relativamente àquele que compreende isso.
No entanto, opinião
verdadeira ou correta e ciência não são idênticas. A argumentação de Mênon vai
nesta direção quando a certa altura ele afirma “que aquele que tem ciência
sempre será bem-sucedido, ao passo que aquele que tem a opinião correta às
vezes acertará, às vezes não”. A partir dessa descrição de Mênon, Sócrates faz
a distinção entre opinião correta e ciência: o valor da opinião correta estaria
na condição de alguém fazer os encadeamentos por “um cálculo de causas”, ou
seja, é preciso oferecer algum tipo de justificação para a opinião correta. Sócrates,
fazendo uma analogia entre a opinião correta e as estátuas de Dédalo[3],
admite, por assim dizer, a provisoriedade constitutiva da opinião verdadeira
com relação à ciência, quando afirma que “as opiniões que são verdadeiras, por
tanto tempo quanto permaneçam, são uma bela coisa e produzem todos os bens”. Por
outro lado, a ciência difere da opinião correta porque seus encadeamentos (seu cálculo
de causas) são mais plenamente justificados e permanentes, isto é, não são
fugidios como as estátuas de Dédalo.
Assim, tanto a opinião
verdadeira quanto a ciência podem guiar o homem, ainda que não do mesmo modo. Ambas,
de certa maneira, são proveitosas a uma vida feliz. É possível realizar atos
tomados como virtuosos mesmo se aquele que os realiza não tiver conhecimento ou
ciência acerca das causas para tais atos.
Finalmente, Platão,
através da persona de Sócrates, leva
a efeito uma crítica à atividade política tal como ela se apresentava na Atenas
em que vivia. O pensamento de Sócrates conduz o diálogo à seguinte conclusão:
se a virtude não é bem ciência, então talvez seja uma feliz opinião. Deste
modo, não foi por terem sido sábios que alguns homens – como afirma Sócrates a
propósito de Ânito e Temístocles[4]
– guiaram proveitosamente as cidades, mas graças a uma feliz opinião. Por esta
razão não são capazes de produzir continuadores já que o que lograram ser como
políticos não tem por causa ciência nenhuma. A consequência do ponto de vista
de Sócrates, situando a condução política a partir da noção de opinião correta
(fugidia como as estátuas de Dédalo), é a de que tal atividade está sujeita, em
alguma medida, ao fracasso ou à mistificação, caso não apresente uma
justificação razoável para as suas ações. Sócrates compara os políticos aos
vaticinadores inspirados divinamente, isto é, “quando os deuses estão neles,
falam com verdade, e mesmo muitas coisas, mas não sabem nada das coisas que
dizem”.
Portanto, já que as
deliberações e as ações dos políticos têm por base a opinião correta e não a sabedoria,
e o impacto delas sobre a vida da cidade pode ser devastador,
Sócrates, a partir disto, parece sugerir a necessidade de testar (repensar)
esta ou aquela opinião por meio da crítica e do debate orientados por critérios
menos retóricos do que filosóficos.
[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor
de, entre outros, Confissões Aplicadas
(2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com
[2]
Daqui para frente todas as citações
entre aspas são extraídas de Mênon /
Platão ; texto estabelecido e anotado por John Barnet; tradução de Maura
Iglésias. Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio; Loyola, 2001. 117p.
[3] Dédalo,
arquiteto do labirinto de Creta, foi um ilustre ateniense, tão habilidoso e
perfeito como artista, que fazia estátuas dotadas de movimento. Sócrates se
aproveita de um aspecto dessa narrativa mitológica visando metaforizar as
estátuas de Dédalo como a “opinião correta”, já que essa – tal como as obras do
escultor – por não possuir a propriedade da fixidez ou da constância, não
poderia conquistar o assentimento da razão, porque, mais cedo ou mais tarde,
ela escaparia da alma do homem ou fugiria por entre os seus dedos.
[4] Ânito, à época, era um jovem político em
ascensão e, além disso, foi o mais poderoso dos acusadores de Sócrates no
processo que resultou em sua condenação à morte. Temístocles, de quem se dizia
ter um temperamento inflexível, foi um político
e general ateniense. A menção premeditada a essas figuras importantes da
democracia ateniense indica que Platão, através da Sócrates, está submetendo-os
a uma crítica corrosiva justamente por serem representantes de uma visão política
que tem o repúdio de Platão.
Comentários