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iguais desiguais: entrevista





Entrevista com Ronald Augusto concedida a Marcio Renato dos Santos para a reportagem de capa da edição 52 do jornal Cândido, de novembro 2015 – editado pela Biblioteca Pública do Paraná.

Levando em consideração a sua experiência, o que é ser um autor, um poeta negro no Brasil?
O meio literário é, em certa medida, a representação especular, embora com suas singularidades, das imposturas e imposições socais, raciais e econômicas abrigadas sob o arco ideológico que, por sua vez, tem um forte traço conservador. Minha experiência como poeta e escritor negro em Porto Alegre me ensinou a reconhecer a existência de um desconforto mútuo, isto é, às vezes represento o outro, o estranho e, de outra parte, os demais escritores, que deveriam ser aquilo que chamamos “os [meus] iguais”, formam um grupo com o qual não alcanço ou nem quero alcançar a menor identificação. Felizmente, a contragosto do solo, a literatura brasileira tem uma série de artistas que me servem de paradigma tanto porque afrontaram, quanto porque se afirmaram apesar desse estado de coisas: Machado de Assis, Cruz de Sousa, Orides Fontela, Oliveira Silveira. Alguém argumentará que eles são exceções que confirmam a regra, mas, lembrando Jean-Luc Godard, digo que o cânone (o convencional) é a regra, a arte é exceção, mesmo.

Os autores, as autoras negros/negras brasileiros/brasileiras que você conhece apresentam algum questão em comum nos textos que escrevem e publicam? Caso sim, que tema/questão seria?
Naturalmente que há uma questão de fundo em comum na produção desses escritores e ela assume uma infinidade aspectos, ou seja, essa questão de fundo pode ser resumida numa reação crítica ao preconceito racial, seja ele velado ou não, e que é experimentado por eles (por nós), escritores/escritoras negros/negras, ao longo de nossa formação enquanto nação. Agora, com relação ao modo de abordagem dessa invariante temática, vamos observar diferenças substanciais nos escritos, uns são mais alusivos, outros mais diretos; vemos autores cuja preocupação tem mais a ver com não ferir a autonomia estética, e autores mais interessados em não perder a proximidade com o real; às vezes vamos fruir textos mais experimentais e, por outras, encontramos textos mais convencionais com relação aos modelos literários, ainda que a temática seja contundente. Enfim, assim como já não vale insistir na ideia de um movimento negro unificado, pois para a riqueza do debate o bom mesmo é estimularmos movimentos negros, diversidades negras, então é importante, do mesmo modo, apostar na ampliação de vozes e linguagens negras e estimular o diálogo entre elas, diálogo em que não se despreze o que é irredutível a cada um desses modos discursivos.

No Brasil, a presença, a participação, do negro na literatura/poesia é similar à presença do negro em outras áreas de atuação? O que pensa a respeito?
Sim, essa participação se dá de modo análogo, inclusive porque há poucos negros cursando o ensino superior. Temos esse histórico prejuízo social e econômico que condena a população negra à baixa escolaridade, mas todos nós já temos conhecimento de tal situação. Felizmente, ainda que aos trancos, políticas de inclusão, como as cotas e o reconhecimento de comunidades quilombolas, começam a ser implementadas graças às lutas dos movimentos negros. Mas, no que diz respeito ao campo da literatura negra brasileira, os leitores ou interessados ainda têm que batalhar muito para tomar contato com essa produção já que se trata de uma tradição como que negligenciada. Tal contato não favorece apenas os escritores negros, isso, na verdade, pode trazer um benefício para o próprio sistema literário, pois o alargamento dos limites desse sistema vai repercutir, ao fim e ao cabo, em diversidade textual para a literatura contemporânea feita no Brasil. Por outro lado, a produção dos autores negros começa a chamar a atenção para um problema, a saber, as eventuais lacunas e ausências relativamente a essa mesma literatura tanto nas prateleiras das livrarias, como no acervo de muitas bibliotecas espalhadas pelo país, pois em alguma medida a literatura produzida por autores negros sofre com os mesmos processos de exclusão que a população negra em geral.

No poema “Brancos”, você trata da questão: “brancos: a rigor não existem, os comerciais é que lhes conferem existência./ brancos são universais, jamais particulares. /tenho amigos brancos. são engraçados./ a branquitude dos brancos é cega.” Qual, em geral, a recepção deste texto poético? Você tem algum exemplo de uma reação, dos seus leitores?
Esse poema com andamento de prosa já foi publicado no meu blog, em vários sites e redes sociais; também já realizei diversas leituras públicas desse poema em shows de música, saraus, salas de aulas. No geral me parece que não chega a causar desconforto nas pessoas brancas, nem nas negras. Mesmo que um ou outro considere o poema agressivo, no fundo eles sabem que o que está sendo dito não é nenhum absurdo. Mas eu preciso lembrar que “Brancos” faz um contraponto com outro texto cujo personagem em questão é o negão. Reservo a ambos o mesmo tratamento irônico: tristes personagens do nosso racismo cordial e pós-colonial.

No texto “A poética do estranhamento e a afro-brasilidade na produção de Ronald Augusto”, Zélia Maria de N. Neves Vaz faz algumas observações sobre a sua produção, por exemplo, ao mencionar que, em um de seus textos, “o eu lírico traz para discussão a situação dos mestiços na contemporaneidade e termina por fazer uma analogia com o sistema colonial na última estrofe.” Esses temas estão presentes em grande parte de sua produção? Pode citar alguns exemplos que considera relevantes?
Vamos ver. Esses temas estão presentes em minha poesia, porém não do modo como a autora os interpreta. Achei que nesse ponto a leitura da Zélia Maria foi um pouco simplificadora, talvez até forçada. Mas isso talvez seja decorrência do apetite acadêmico ou do interesse da academia pela definição dessa literatura. Eu costumo dizer que o tópico da literatura negra não deve ser lacrado às pressas. Exceto, talvez, do ponto de vista de alguma vaidade acadêmica ou de certa limitada retórica militante, essa literatura é algo que, a rigor, não tem de ser resolvido. As tensões étnicas, sociais e políticas às quais estes textos em certa medida fazem alusão, estas sim, podem e devem ser resolvidas. Mas um (bom) poema não admite solução. No entanto, é claro que esses temas são constitutivos do meu projeto textual. Já quanto a citar exemplos, eu tenho dúvidas, pois não tenho interesse em conduzir a fruição do leitor. Por outro lado, indico a leitura do meu livro Cair de costas onde, segundo o Régis Bonvicino e o Ricardo Silvestrin, os estilemas de uma poética negra mais áspera estão aí bem presentes.

Qual a recepção de sua obra?
Acho que a recepção tem sido boa e bastante qualificada. Há anos meus poemas (os visuais principalmente) são publicados na revista alemã Dichtungsring. Traduções dos meus poemas para o inglês apareceram nas revistas Callaloo e Afro-hispanic review. Professores de literatura nos Estados Unidos, na Alemanha e na França estudam minha poesia com seus alunos. Nos últimos tempos não tenho mais bancado os meus livros, pois começo a ter editores dispostos a me publicar sem que para isso eu tenha que recorrer às minhas economias, enfim, acho que a situação está melhorando. Além do mais, passei da idade da lamentação.

Como você define a sua obra?
Melhor deixar essa tarefa ao crítico interessado. Espero apenas realizar com cada objeto verbal uma espécie de experiência capaz de produzir o mais genuíno prazer estético no leitor. Espero que com meus poemas eu consiga colaborar para que as intervenções artísticas e culturais provoquem choques de pensamento. Espero voltar a fazer poesia sempre (pois não tenho garantia nenhuma de que mais adiante lograrei um poema), mas pretendo uma forma de poesia que não tenha nada a ver com a poesia pó de arroz, essa poesia de homem branco que, em boa medida, é levada a cabo por muitos dos meus contemporâneos.

Pode citar alguns autores negros, em atividade, os quais você admira a produção?
Posso, sim: Oliveira Silveira (1941-2009), Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira e Cidinha da Silva. Oliveira Silveira é um dos axés (um fundamento) da literatura negra no Brasil; em 2012 tive a oportunidade de organizar e apresentar a reunião de sua obra poética. Ricardo Aleixo, poeta e performer interessado na experimentação enquanto conquista e na intersecção entre as linguagens. Edimilson de Almeida Pereira, cuja poesia é uma vigorosa e inventiva recriação da episteme afro-brasileira. E, finalmente, Cidinha da Silva, prosadora refinada que situa seu texto na nervura do presente, atenta aos ardis das representações e das afecções a que são submetidos os negros contra um pano de fundo multimídia.
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Há participação dos negros na cena literária brasileira? Qual a sua opinião?
Ainda há pouca participação, mas ela vem crescendo. Através de estudos acadêmicos a literatura negra vem se consolidando e ganhando prestígio. E esses estudos revelam também a tradição estilhaçada da produção literária negra.  Há, por exemplo, registros de escritores negros com obras publicadas já no século 18. Em Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (Ed. UFMG, 2011), o interessado vai encontrar um mapeamento surpreendente de poetas e prosadores negros que permaneciam à margem. Trata-se de uma tradição que segue a se atualizar criticamente no presente.


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brancos
Ronald Augusto

brancos são aqueles tipos que aparecem nos comerciais. ao contrário do que acontece com não-brancos, a presença de brancos em peças publicitárias não precisa ser justificada.
brancos: a rigor não existem, os comerciais é que lhes conferem existência.
a máxima segunda a qual um produto que tem um branco como garoto propaganda é indicativo de que este produto será bem recebido, só se justifica pela preguiça, pelo cansaço e pelo preconceito.
brancos são universais, jamais particulares.
para os brancos qualquer um que se afirme não-branco comete um crime de lesa humanidade, afinal todossomoshumanos.
tenho amigos brancos. são engraçados.
a branquitude dos brancos é cega.
brancos dizem: “você sabe com quem está falando?”.
é branca a mão em close up que passa ou insere o cartão de crédito. nas cartilhas de lógica consta: “sócrates é branco”.
brancos não aceitam ser coadjuvantes. pagam seus impostos e fazem questão de publicar isto.
se autoproclamam brancos, mas a contragosto (pois isso, afirmar uma identidade ainda que provisória, é coisa de não-brancos).

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tópicos sobre o negão
Ronald Augusto

todo branco tem um amigo negão que é gente finíssima, uma simpatia e super divertido.
negão é uma pessoa que sempre é chamada de “negão”, e esta pessoa jamais será referida por qualquer outro nome como pedro, joão, aires. parece não haver nome que grude à sua pele.
todo negão tem vários amigos brancos que se orgulham de não ser racistas, tanto que, numa boa, tratam o amigo negão referindo-se a ele assim “o negão”. e ele não vê problema nenhum nisto.
todo negão é um blackface. sua ginga é superestimada e inigualável. todo negão está detido em si mesmo.
todo negão quando volta para a sua quebrada encontra outros idênticos a ele e todos entre si se tratam por “negão”.
todo negão não pode deixar de ser negão. quando esta essência está em risco, sempre surge alguém para chamar sua atenção com a seguinte frase: “ah, para com isso, negão!”.
mussum é o negão que todo branco gostaria de ter a disposição em sua casa para animar as festinhas. quando éramos crianças o sr. renato aragão nos ensinou diversas acepções humilhantes contidas no termo “negão”.
o trocadilho segundo o qual “deve ser legal ser negão no senegal” é na verdade um epitáfio.


  
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Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante(2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/

Marcio Renato dos Santos é contista, autor dos livros de contos Minda-au (2010),Golegolegolegolegah! (2013), 2,99 (2014) e Mais laiquis (2015). Nasceu e vive em Curitiba (PR).

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