O
soft em Racismo no Brasil e afetos correlatos
A recusa ao debate público sobre
fraturas sociais que, o mais das vezes, se mantêm arraigadas nas esferas do
espaço privado, ratifica a sensação de segurança de quem patrocina essa
regressão da indiferença ao preconceito – ou à sua naturalização –, tornando os
envolvidos diretos aptos apenas a desempenhar os atos, as tarefas e as falas
estupidificantes que a sociedade exige deles. Os envolvidos hesitam entre a
suposta elegância de jactar-se afirmando que o que o vem de baixo não os atinge
e o círculo vicioso da várzea, onde é cada um por si enquanto o preconceito
racial chuta as canelas dos desavisados.
Em Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê Edições, 2013) a
escritora Cidinha da Silva se dispõe a discutir os dilemas relativos a esse
estado de coisas. No que concerne ao nosso modelo de racismo, cuja anedota mais
precisa é aquela – conquanto também seja perversa – segundo a qual cada
brasileiro é uma ilha de tolerância cercada por um mar de reacionários, Cidinha
da Silva aguça sua percepção para os efeitos – as afecções – dessa situação
sobre os nossos afetos. O que me parece interessante e novo é o registro
escolhido pela escritora para levar a cabo sua investigação: a crônica. E explico
por que. Grosso modo, a tradição acadêmica no campo da sociologia ou da
história, ao dedicar grande atenção ao “problema do negro no Brasil”, acabou
por se constituir em lugar autorizado para a leitura desse quadro que – é bom
frisar – segue em movimento. Esses discursos, por assim dizer, representam o hard no que toca às análises do problema,
indicam a forma canônica de assédio ao objeto.
Por outro lado, Racismo no Brasil e afetos correlatos e,
além disso, as intervenções on line
que Cidinha da Silva vem fazendo há algum tempo representam um lance renovado
na materialização de um discurso soft
sobre esse tópico fundante da controversa formação brasileira. Mas não se trata
apenas de uma mudança na forma de debater o preconceito e a multifária
experiência afrobrasileira; não. Cidinha, ao optar pelas formas breves e
elípticas em detrimento de uma voz épica e, de resto, postada de cima para
baixo, procede a uma leitura tanto crítica quanto semiótica dos ardis ligados
às representações do negro, e nesse movimento a autora acaba reinventado o
negro e sua imagética. Isto é, o observador ou o problematizador do “problema
do negro no Brasil” – o leitor me perdoe o jogo de palavras, mas é necessário –
é o próprio negro que, agora, por meio de uma reversão de atribuições e
predicados, coloca em cena “o problema do branco no Brasil” repropondo, assim,
os elementos da equação.
Em resposta àqueles discursos hard, Cidinha da Silva por meio do modo
enviesado da crônica, espécie de estilo da revanche dissimulado em ritmo soft, dedica uma atenção especial ao
espaço reservado aos negros nas linguagens e narrativas televisivas. A
cronista, como prosadora refinada que é – e de posse de um extremo apetite sígnico –,
situa seu texto na nervura do presente, e atenta às simulações das consagrações
e dos esteriótipos a que são submetidos os negros contra um pano de fundo
multimídia, reúne em Racismo no Brasil e afetos correlatos as
abordagens mais inovadoras de que tenho notícia até agora a propósito desses
tópicos.
Na obra em questão destaco os escritos sobre Michelle e
Obama; os comentários sobre o amor e o ódio devotado pela sociadede brasileira
a Anderson Silva; o olhar para as relações inter-raciais na novela Lado a Lado; as controvérsias em torno à
figura de Joaquim Barbosa; a leitura do temor da branquitude frente a Ellen
Oléria, Jean Wylis, Mano Brown e as domésticas, enfim, o cardápio
intersemiótico de Racismo no Brasil e afetos correlatos é assombrosamente amplo e, felizmennte, avesso tanto aos discursos hard evocados mais acima, quanto à
falação daquela antiga militância negra aferrada a “causas e compromissos
históricos”.
Outras indicações a propósito dos brevíssimos ensaios de
Cidinha da Silva poderiam ser adiantadas de minha parte ao leitor, mas, em
respeito à sua liberdade de interpretação e ao espaço que se deve dispor em uma
resenha para dizer algo sobre o livro que seja mais do que protocolar informe
ou elogio, interrompo por aqui meus comentários com a convicção de que esse
mesmo leitor cumprirá sua parte nesse jogo interpretativo que está proposto em Racismo
no Brasil e afetos correlatos.
A riqueza do quadro apresentado e
reinventado por Cidinha da Silva leva em conta a força de todas as contradições;
seus escritos acentuam os aspectos transformadores em estado de fermentação e
que, ao fim e ao cabo, se lançam desde a mais profunda subjetividade e de sua
árdua tradução.
[1] Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta,
músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro
(1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas
(2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012)
e Empresto do Visitante (2013). Despacha no blog www.poesia-pau.bolgspot.com
e é colunista do website www.sul21.com.br/jornal/
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