Onde não há facilidade
Ronald Augusto[1]
Para o
leitor, o poema se apresenta, numa primeira aproximação, como que vertido em
língua estranha, mas ao mesmo tempo remotamente familiar. Na comunicação
poética, a imagem da leitura como algo rente ou similar à operação tradutória
se impõe de modo decisivo. A comunicação poética pressupõe uma situação de
embate com a dimensão da intraduzibilidade, do hermetismo, entendidos aqui como
estilemas da condição de um limite disciplinador imposto pelo jogo de relações
requerido ao poema. Mas tal dilema – a razoável impenetrabilidade da
poesia, essa tópica dos “portões fechados”,
como refere Denise Freitas em um poema do conjunto – se resolve, por outro
lado, no momento em que o leitor-poeta assume a responsabilidade pela coautoria
daquele texto por meio de um gesto de interpretação quase livre, uma vez que a
estrutura recorrente do poema em alguma medida também determina o palmilhar da
leitura. Todo esse processo resulta em uma espécie de tradução-leitura
colaborativa e envolvente, convertida, por fim, em transcriação (para usar aqui um
conceito de Haroldo de Campos). Ao fim e ao cabo – e para
tirar melhor proveito de sua fruição –, o leitor, diante dos “portões fechados” da tapeçaria de
sentidos de Percurso onde não há, deve
deliberar se vai limpar os pés das próprias pressuposições na entrada ou na
saída do jogo interpretativo.
É
desde esse ponto de vista que me disponho a ler Percurso onde não
há, terceiro conjunto de poemas
de Denise Freitas. Com efeito, a menção lateral que faço a um possível tônus
hermético a informar a linguagem da poeta não pretende encerrar o assunto a
respeito. Inclusive porque o atributo, o mais das vezes, serve antes como
classificação pejorativa do que como valência poética a ser considerada a sério.
Poetas de linhagem mallarmaica como Denise Freitas, cujos poemas empreendem questionamentos
sensíveis sobre os limites da expressão verbal, impondo-lhes a suspeição
relativamente ao objeto resultante da nomeação, são advertidos tanto
pelo seu aparente formalismo, quanto pela obscuridade desafiadora de seus
escritos; nessas ocasiões o bom senso se fecha na retranca
conservadora da inteligibilidade ou da comiseração com os limites de repertório
de um leitor que, por pouco, não é considerado como cliente.
Todo poema é forma, por
isso mesmo trata-se de uma redundância preconceituosa acusar o poeta de
formalista. E todo poema é hermético, primeiro porque seu significado é
irredutível àquele leitor que se debruça sobre ele, e, segundo porque tanto
emissor quanto receptor, que estabelecem um contato por meio desse canal
ambíguo (o poema) também são ambíguos, isto é, eles são afetados pela linguagem
de que se servem quando inventam esse singular ato de comunicação
incomunicável. O simbolismo lato sensu
da poesia de Denise Freitas esfuma os contornos do mundo em vista da pureza do
impreciso e do indeterminado. Seu esforço discursivo se presentifica na
conquista da sugestão, na alusão que se constela na forma dúctil do poema.
Esse
toldo alarga a sombra
das
cores que não bastam.
[...]
Portanto, mais do que
insistir na perspectiva de um esforçado hermetismo contido entre as capas de Percurso onde não há, me parece
de maior interesse convidar o leitor a assumir sua condição não digo de
hermeneuta (o que seria previsível), mas de hermenauta (o que é mais produtivo
para a economia poética), pois talvez desse modo o leitor – como que num
périplo – não tema o desafio proposto por Denise Freitas e consiga dizer com a
poeta um verso como o que segue:
“razão do abismo em que me alço”.
Eis aí uma poderosa metáfora para os sentidos cambiantes dos poemas de Percurso onde não há. Aliás, já
no título da obra nos deparamos com essa forma de fracasso exitoso presente
tanto no que toca ao dizer poético, como no que toca à sua recepção, pois este “abolido bibelô de inanição sonora”
(Stéphane Mallarmé dixit) quando
cristalizado em seu relato, isto é, no poema feito e grafado na folha branca,
se redime da suposta condição de fracasso comunicativo. O sentido se converte
numa conquista e não em algo que o poeta deposita no texto como que num gesto
de leniência com o leitor preguiçoso. Em outras palavras, o sentido como
salvaguarda, esse lastro lançado à realidade através do poema que se pretende
fiel ao objeto. Quanto a isso fico com Jacques Derrida que, expropriando Walter
Benjamin, escreve: “Mas o que ‘diz’ uma
obra literária (Dichtung)? O que ela comunica? Muito pouco a quem a compreende.
O que ela tem de essencial não é comunicação, não é enunciação”.
Denise Freitas dissipa os
significados (“selos de línguas controversas”), através de uma abreviação e de um
senso de lacunas cujos significantes ajustados, às vezes, ao constructo métrico
e ao verso longo de ritmo distenso e similar ao andamento da prosa (bases sobre
a quais a poesia pode ou pôde plasmar-se), e, às vezes, à música sem-versista da fratura e da sutil
percepção de espacialização (estilemas da contemporaneidade) recompõem arranjos
semânticos pelas interações de proximidade e contraste estabelecidas. A poeta
sabe, felizmente, que tudo se passa de modo inapelável na superfície atritante
da linguagem. O hermenauta-modelo de Percurso
onde não há educa os seus cinco sentidos num pervagar impreciso por sobre o
abismo pelaginoso do discurso poético de Denise Freitas que através de sua
vontade de fazer linguagem acaba por
nos comunicar estruturas
significantes.
Em Percurso onde não há percebe-se a recorrência de uma constelação de
palavras-signos, tais como “simulação”, “disfarce”, “equívoco”, “rastro”,
“abismo”. Essas verdadeiras metáforas (só por desatenção poderíamos situá-las
na categoria de vocábulos) evocam uma
sorte de poética da desfiguração (um enublar referencial), da recusa à
naturalidade da linguagem e às regras públicas do discurso sobre o qual o
verismo do mundo é assentado. A poeta, com agudeza “dulce ductilíssima”, leva a efeito o pouco e o opaco constitutivos
do poema enquanto instância negativa sempre prestes a dizer que “medida nenhuma rutila”. Percurso onde não
há instaura sua cadência “no rastro
do abismo” branco da página onde o sopro de Denise Freitas se perfaz sem
transigir com o tolerável e o fácil.
[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e
crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair
de Costas (2012), Decupagens Assim (2012),
Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com
e escreve
quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/
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