AXÉVIER, CONTRALAMÚRIA[1]
Ronald Augusto[2]
Linguagem de perturbante
experimentação, uma poesia de invenção como a de Arnaldo Xavier (1948-2004)
pode ser examinada não só no que diz respeito à estranheza da fissura aberta
por ela em partes ou no corpo de determinado sistema literário. Vale dizer,
dentro de um traçado de rupturas inaugurado pelo alto modernismo e que, desde
então, parece ter se constituído no cânone da contemporaneidade, o que Arnaldo
Xavier injeta de novo em tal corrente sanguínea? Temos aí, um ponto. Por outro
lado, este exame nos permite compreender também um pouco do caráter e das
imposturas desse sistema mesmo que, desde sua condição normativa e dogmática,
manteve ou mantém, com relação às transgressões de Arnaldo, uma atitude, no
mínimo, defensiva.
Sem receio, sem dever favor a ninguém e
satisfeito por não ser confundido com os medíocres beletristas com lugar garantido
em antologias temáticas, “todos [estes que] a tudo o seu logo acham sal” (Sá de
Miranda), Arnaldo Xavier desbordou do molde para o qual parecia talhado. Para
desgosto do poeta e estudioso da literatura negra, Oswaldo de Camargo, Arnaldo
não se inseriu “claro e negro” na linhagem daqueles criadores que lograram
“falar negro-poeticamente”. Arnaldo não aceitou a ideia de que a contrapartida
aos esforços criativos de suas fabricanções,
seria ele assumir – em atenção à expectativa de alguns dos seus leitores e
antes que fosse tarde demais – um posto de honra nesta sorte de linha
sucessória. Na economia da visada diacrônica, não há uma próxima chance, nem
uma segunda escolha. Xavier teria um lugar assegurado ao lado de, por exemplo,
Solano Trindade, Adão Ventura, Geni Guimarães, Oliveira Silveira, Cuti e Éle
Semog, seus companheiros naturais no âmbito adequado. Entretanto, o poeta, por
assim dizer, pede “vistas” ou interpõe um grau de suspeição em ralação ao que
parecia ser o coerente passo-a-seguir do seu percurso textual. E questiona a
falsa dicotomia incrustada nas opções que se lhe apresentam virtualmente, ou
seja: 1) entrar na idade do bom senso como mais um poeta negro afirmativo; ou
2) ser condenado à incomunicação, haja vista a aporia sugerida pelos grafismos
e signos que escolhera como forma de linguagem. Não tanto pela companhia,
Arnaldo Xavier declina do convite-logro feito por Oswaldo.
O fato é que sua
linguagem, já francamente experimental desde os primeiros anos da década de
1970, pressupõe o poema como um experimento sígnico cujo acontecimento não pode
se justificar apenas para servir às necessidades de certas interpretações, por
mais bem intencionadas e relevantes que elas sejam. A impressão de “pura
curiosidade” e de fracasso comunicativo que Rosa
da Recvsa (1978), um dos seus primeiros livros, desperta em Oswaldo de
Camargo – o crítico e entusiasta, par
excellence, de uma literatura negra, competente, mas convencional, inserida
no panorama antológico das letras brasileiras –, resume algo sobre o tipo de
recepção que acabou prevalecendo entre os detratores de Arnaldo Xavier. Mas não
havia só os imperitos inimigos se pronunciando a respeito. Muitos outros,
felizmdente, admiravam ou admiram e propõem leituras novas divulgando e
debatendo a poesia do transnegressor.
De outra parte, Arnaldo nunca fez questão de defensores. Aliás, ele não se
defendia. Pelo contrário, mais atacava do que qualquer outra coisa. Arnaldo pautou
criativamente os seus críticos retranqueiros. Os opositores é que se viam
obrigados a tomar uma posição frente às intervenções sincrônico-valorativas do
autor de LudLud (1997). Arnaldo
Xavier inventou os seus detratores. A bem da verdade, dir-se-ia que jamais
existiram, tão grande era a mediocridade com que se espojavam. No entanto, a
arena formada sobre o ideário estético e étnico-político de Arnaldo Xavier,
engendrou um ambiente e este ambiente – como disse Ezra Pound a propósito dos
diluidores da sua época – é que conferiu a eles, seus adversários, uma
existência. Ainda que volátil.
A bossafro da poesia verbal e não-verbal de Arnaldo Xavier questiona,
às gargalhadas, a dimensão estrita e estreita da poesia e da prosa dos seus
pares, onde se verifica a tolerância pós-moderna a limitar-se com o compromisso
politicamente urgente, fusão que, ao fim e ao cabo, resulta em reducionismo de fast thinkers. Arnaldo, intelectual e
militante negro (em sentido forte), isto é, avesso a qualquer tipo de afundamentalismo, não professava a
profissão do líder galvanizador. Uma imagem possível para tentar descrever o
paraibano Axévier é a do autor cuja obra e reflexões críticas estão tensamente
imbricadas no debate referente aos dilemas de uma vertente negra na literatura
brasileira. Mas o aceite e a negaça de Arnaldo Xavier com relação a esta questão,
se define, acima de tudo, por uma atitude problematizadora, metalinguística,
intra e intertextual, do que por uma afirmação concludente ou utilitarista de
uma causa que, de resto, se interessa em legitimar tópicos identitários através
de uma ação literária entendida como testemunho de verdade étnica ou de
realidades meramente vivenciais. Do ponto de vista da poética de Arnaldo, a literatura
negra se configura como um debate que não precisa, a princípio, ser lacrado,
assim às pressas. Exceto, talvez, do ponto de vista acadêmico, essa literatura se
constitui em algo que não tem de ser resolvido. Afinal de contas, um poema de
verdade não admite solução.
Consciência de linguagem
requer um severo sentido de ironia contra si mesmo. Arnaldo era radical, um
poeta radical. Identificava, a um só tempo, questões de forma e de fundo. Feito
Yeats, não separava o dançarino da dança. O gesto radical se projeta sobre a
linguagem. Não há linguagem desprovida de pensamento. E o pensamento instala o
mundo entre parênteses justamente para melhor pensá-lo. A poesia de Arnaldo
Xavier é a transnegressão dos limites representacionais da linguagem, fronteira
exusíaca entre mundo e signo.
Ao propor novas
expressões negras, numa espécie de transe intertextual onde colaboram tanto a
logopeia nagô de Muniz Sodré, quanto a fanopeia jazzística de Spike Lee,
Arnaldo propõe, em fim de contas, novos e vastos pensamentos sem fios. Com
efeito, sua poética repercute no seu pensamento conferindo-lhe um viés
experimental, inoportuno e negativo. Algo vivo. Axévier era o dissenso via
intersemiose, o desarraigamento de si, o solapar das evidências ferreamente
construídas sobre retóricas da identidade, não por acaso erísticas, e, por sua
vez, pavimentadas sobre tensões históricas e sociais retidas num pano de fundo menos
utópico do que reformista. Arnaldo torceu o gasnete à eloquência pictórica do
conteúdo, suas palavras exorbitaram iconicamente o contorno dos sintagmas,
viraram desenhos sintéticos do seu pensamento-arte.
[1] Este breve ensaio [agora revisto e um pouco ampliado] foi estampado
pela primeira vez em Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro (2006 ou 2007),
revista editada por Ricardo Aleixo e mantida pela Fundação Municipal de Cultura
de Belo Horizonte.
[2]
Ronald Augusto é poeta, músico,
letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya
(1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No
Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com
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