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4 passagens para dente de cachorro


4 passagens para dente de cachorro[1]
ronald augusto[2]





i.

como personagens de um filme de buñuel os contendores os jogadores embora nada à vista dos olhos os agrilhoe ao lugar não conseguem se afastar da órbita da mesa de sinuca jamais surtirão do limbo desse bar dessa pinga das marcas de giz sobre a carta geográfica da flanela verde dos buracos negros das caçapas desaguadouros sumidouros de sórdidos humores masculinos aquém-líricos. a tabula rasa de jogos pífios buracos pifes canastras vazios de tanto virtuosismo bebum. homens debruçados sobre lances de dados carteados carecidos sem que o saibam de qualquer compaixão por si mesmos.

ii.

e tudo de roldão vai esbarrar em poemas. os biografemas de cristiano moreira. as leituras e suas indisposições. a noção de que o assédio ao autor de sua eleição aos significados de sua signância as fraturas abertas pela fatura inventiva do objeto de estudo enfim nada disso lhe garantirá a compreensão o tapa nas costas a nota exaustiva. o poema é algo sem solução. ozman e os homens de palha de navegantes entre estes extremos que se tocam precariamente vejo assomar a salsugem e a linguagem de cristiano moreira.

iii.

o rito dramático de quem carpe e de quem celebra. a voz trágica. as vozes dramáticas. essa voz que soa através de. voz que t. s. eliot julgava ser o teste decisivo do vero poeta impostor. desentranhar de si ou da própria aniquilação ontológica o alheio que também pode justificar minha nossa passagem: “treme a letra vagabunda/ ante a voz de seu arconte”.

iv.

o território de taipa latão aparas de telhas de amianto e de zinco papelão juta lonas pretas de plástico sobre casebres ruinosos imensas jerusaléns a espera de um conselheiro. as gentes com quem o poeta se compromete. o poeta que a contrapelo só pode ser um não-conselheiro nesta outra vida brasileira de aquém-túmulo onde se morre de bala de polícia e de milícia de fome de zica e de desinteria. onde se morre da demissão da política em sentido próprio. mas o dente de cachorro do poeta que surrupia e devora tudo salva em fim de contas toda essa vertigem em seu arquivo digital. o acabar-começar do mundo nas garras e ramas tipográficas. tudo finda e se funda em um lance em um golpe de dados e de estados mentais ou no caso em tela tudo deságua nessa sorte de materialidade evocada através da divisa de barthes recuperada ao seu le plaisir du texte: “o prazer do texto é isto: o valor passado ao grau suntuoso de significante”.


porto alegre, 02 de setembro de 2018.




[1] O presente texto, de cunho menos crítico do que poético, foi publicado como apresentação ao conjunto de poemas Dente de cachorro (2018), de autoria de Cristiano Moreira. A obra foi editada pela Nave, casa editorial do poeta Dennis Radünz sediada em Florianópolis.

[2] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016).



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