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seis coisas: as últimas semanas






Seis coisas: as últimas semanas
Ronald Augusto[1]

I

Tão logo o massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), havia se consumado, o senador Major Olimpio (PSL) se manifestou favoravelmente à flexibilização do estatuto do desarmamento. Sua alegação em defesa de que o cidadão de bem tem o direito de se proteger e se armar se assentou na seguinte hipótese: se, no episódio em questão, alguma pessoa estivesse com arma regular (professor, funcionário etc), talvez o dano não fosse tão trágico. A argumentação do Major Olimpio pela ampliação do acesso às armas se equilibra precariamente sobre o advérbio talvez. Nenhum dado científico é apresentado; nenhuma pesquisa profissional para justificar sua convicção. A manifestação algo teatral do senador do PSL está registrada em vídeo.
Por esta razão, quando o argumento é tacanho, a defesa da crença tem que ser na base do grito e gesticulatória e histérica. Comprove o internauta por si mesmo.

II

O machismo institucional mata as mulheres negras e não-negras. O racismo institucional e o machismo institucional matam as mulheres negras. E mais não digo.

Uma das debatedoras (eu nem ia dizer, mas vá lá, branca) do recente programa Roda Viva (11/03), bem equipada de dados estatísticos, constatou que enquanto o feminicídio das mulheres brancas vem caindo, o das mulheres negras só sobe. Como explicar isso? Ela perguntou. Em seguida afirmou que “não temos uma explicação”. Entretanto, Monica Benicio (esposa de Marielle Franco), felizmente, replicou: “o que explica isso é o racismo”. Ponto.
É por isso que precisamos do feminismo negro.

No momento mais ridículo do Roda Viva dedicado ao 8 de Março, a professora Ligia Ferreira por alguma razão precisou se referir à lei 10.639, e o jornalista que comanda o programa imediatamente complementou: “a lei Maria da Penha...”. Pano rápido.

Ser racista, machista e homofóbico, deveria significar um impedimento decisivo a qualquer pessoa que quisesse se candidatar a cargo eletivo. A propósito do pronunciamento de um vereador de Nova Petrópolis (RS) às vésperas do dia 8 de Março.

Também no dia 8 de Março o Sr. Jair Bolsonaro se manifestou sobre a luta das mulheres. Por certo que protagonizou mais um fiasco. No entanto, o ponto não foi o texto medíocre e convencional desse cidadão (ele se referiu às mulheres como “essas jóias raras”), afinal não resultou em surpresa nenhuma. O problema se resumiu ao vídeo compartilhado por Bolsonaro no qual a ministra Damares afirma que a violência contra mulher não é só de caráter doméstico, que isso acontece em locais públicos etc. Sabemos muito bem disso. O fato é que os dados indicam que cerca de 70% dos feminicídios são praticados por maridos e ex-maridos, portanto, a violência doméstica é, sim, o problema central. Entretanto, a ministra parece estar mais interessada em preservar, à sombra das goiabeiras em flor, o matrimônio e a família tradicional do que qualquer outra coisa.

Não entendo o argumento segundo o qual as manifestações ou as supostas trapalhadas homofóbicas, machistas e racistas, tanto de Jair Bolsonaro, quanto de seus subalternos, são cortina de fumaça desviando nossa atenção (“nossa” quem, cara pálida?) do que realmente interessaria. Esses seriam temas menores? Tais visões de mundo (sim, caro cara pálida, são concepções de ser e de posicionamento no mundo) não seriam relevantes nem urgentes? Rebater, resistir a essas demonstrações de retrocesso suportadas pelo atual governo enfraqueceria a luta democrática? Qual o nosso (negros, mulheres, lgbts...) papel, afinal de contas, nessa porra? Supondo que fosse preciso perguntar isso àqueles que supostamente divisam o quadro completo.

Cansei de ouvir (de afetos e desafetos de esquerda) num passado nem tão distante que a “questão racial” (racismo), por exemplo, se resolveria quando o problema social e econômico das classes desfavorecidas fosse resolvido.
As imposturas e as negações vêm e vão.

Vinte ministros e duas ministras, mas, segundo o Sr. Jair Bolsonaro, finalmente “temos um equilíbrio”, pois cada ministra vale por dez homens. O empresariado predador exulta.

III

A propósito do episódio do golden shower. Na década de setenta havia o programa humorístico "Balança mais não cai". Um dos seus quadros era o de "Fernandinho e Ofélia" no qual a personagem Ofélia (segundo a ótica misógina e machista que ainda persiste em diversos campos) só abria a boca pra dizer besteira, causando grandes embaraços ao marido que tinha que corrigir e desfazer as sandices da consorte ignorante. Agora, ao contrário da tóxica ficção cômica do século passado, na vida real do Brasil de 2019, o Sr. Jair Bolsonaro em nossa democracia que, aparentemente, "balança mas não cai", cumpre com garra a função de só abrir a boca pra dizer besteira. O Sr. Jair Bolsonaro, tal como a personagem do velho programa, repete o bordão, jurando para si mesmo e seus milicos, que só “abre a boca quando tem certeza”. Mas nada disso tem graça alguma.

Já é cabível escrever uma “teoria do merdalhão”. Feito nossa realidade, o trocadilho também é infame.

Não resta dúvida de que vocês elegeram o tio do churrasco. Quem mais compartilharia um vídeo desses posando de moralista de plantão?

IV

Temo que o Zé de Abreu se transforme no mito do lado de cá, isto é, que se converta numa outra contrafação bem sucedida.

Por que as pessoas não se autodeclaram – ou se autoproclamam –, idiotas logo de uma vez?

V

O desfile da Vila Isabel é o exemplo acabado de formalismo reacionário. Se um dia eu vier a usar o conceito de “formalismo” enquanto pecha, será sempre em relação a esse desfile da Vila Isabel do Martinho, pasmem. Que tristeza. Por sorte fomos redimidos pela Estação Primeira da Mangueira. Marielle, presente!

VI

Um poeta por quem nutro grande admiração: Heitor Saldanha. Pouco lembrado, quase nunca citado. Por quê? Há mais de 30 anos, pelo menos, li A Hora Evarista, um exemplar de biblioteca pública. Adorei. Recentemente comprei o livro num sebo de calçada no centro histórico de Porto Alegre. A releitura confirmou minha admiração. Bons versos, imagens nada convencionais, o sentido preciso do instante que será transfigurado em poema etc. Conheci Heitor Saldanha numa Feira do Livro. Oliveira Silveira também o admirava. Tempo, tempo, tempo, tempo.


[1] Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21: http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ronald-augusto/


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