Pular para o conteúdo principal

fortuna crítica em dobro: entre uma praia e outra






NA PRAIA/PÁGINA DE RONALD AUGUSTO

Paulo Faria[1]

Entre uma praia e outra é o título do novo livro de Ronald Augusto. Ao abri-lo, detenhamo-nos um instante nesse título. O que significa, aqui, esta expressão ‘entre uma praia e outra’? Essa expressão é calculadamente ambígua, e muito de sua ambiguidade depende da primeira palavra que a compõe. O que significa, nesse título, ‘entre’? (Guto Leite faz essa pergunta em seu texto de apresentação, e prefere deixá-la em aberto.) O Dicionário Houaiss enumera nada menos que 14 acepções dessa preposição, que formam outros tantos advérbios – de lugar, de tempo, de modo, e assim por diante. A meu ver, quatro desses advérbios são claramente pertinentes à leitura do livro. Como termo constitutivo de um advérbio de lugar, ‘entre X e Y’ designa um terceiro lugar, como quando eu digo que a Gamboa fica entre Garopaba e a Guarda do Embaú. Mas é também espacial a acepção em que eu descrevo, não um terceiro lugar, mas um movimento ou rota entre dois lugares, como no título do opus magnum de Pierre Fatumbi Verger, Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo de Bénin e a Bahia de Todos os Santos dos Séculos XVII a XIX.  No título de Verger, ‘entre’ designa a rota da marinha escravista, enquanto ‘dos’ assinala o intervalo de tempo, um intervalo que também se pode expressar empregando ‘entre’: ‘Dei aula entre as 13:30h e as 16:00h.’ Por fim, há um sentido mais abstrato, que por sua vez dependerá do sentido que dermos à palavra ‘praia’, pois essa também é calculadamente ambígua: se, a maior parte do tempo, Ronald Augusto a emprega na acepção geográfica mais corrente (e nomeia: estamos seguidamente na Gamboa), nem por isso descuida do uso não literal que eu faço ao dizer, por exemplo, que o Idealismo Alemão ‘não é minha praia’; e, no poema dedicado ao livro de Edimilson de Almeida Pereira, Zé Osório Blues (2002), aprendemos que, na obra do poeta negro de Juiz de Fora, ‘o discurso vem dar vai é na / praia da página’ (p. 46). Nenhuma das duas leituras é privilegiada: o discurso de Edimilson ‘vem dar’ na praia, mas também ‘vai’ na praia; o poeta mineiro viveu e escreveu, ele também, entre uma praia e outra.
A praia da página foi explorada por Mallarmé – que, no Lance de Dados, faz o poema rolar, como onda marinha, do alto da página par ao baixo da página ímpar: a página mallarmaica é assim, uma página dupla, a página de um livro aberto. Do mesmo modo, o índice de Ronald Augusto se oferece sinopticamente, por inteiro, na praia formada pelas páginas 4 e 5. Assim, a primeira coisa com que o leitor se depara depois da folha de rosto é a imagem do livro, dos três momentos que o compõem: à esquerda ‘uma praia’, à direita ‘e outra’ e atravessando, de baixo para cima, a divisória, ‘no meio delas’.
Ora, ‘no meio’ pode ser lido como a designação de um lugar intermediário, mas também pode ser tomado como fazendo referência a um lugar em cada praia, no meio da praia (como se diz ‘no meio da multidão’). Nenhuma das duas leituras pode ser excluída. Por um lado, o livro está efetivamente dividido em três partes, das quais a segunda se apresenta, à primeira vista, como um lugar intermediário, nem uma praia nem outra: o cenário de acontecimentos que não transcorrem em nenhuma das duas praias. A uma leitura atenta, porém, torna-se cada vez mais evidente que esse lugar intermediário é uma espécie de recuo ou parêntese que se instaura em cada praia (em cada página) pelo gesto reflexivo através do qual o poema se volta sobre as condições de sua própria enunciação, e poeta reflete sobre seu ofício.
E aqui uma ideia toma forma: cada praia (cada página) é um lugar em que os acontecimentos imediatos (o sol, o mar, o vento – tudo que se pode, por assim dizer, sentir na pele) comportam frestas ou lacunas pelas quais se deixa entrever outra realidade: como indica o poema dedicado a Arnaldo Xavier (‘1948-2004’, pp. 35-6), o aiê da praia é manifestação epifânica do orum. Essa manifestação não é, não pode ser, mais que iluminação transitória, fadada a não perdurar – pois, do lado de cá da página, estamos em um mundo dividido: somos brancos e negros em uma sociedade racista, marcada pelo legado da escravidão (‘o retorno’, p. 52). Já voltarei a isso. Por ora, importa-me assinalar que essa iluminação coincide com esses momentos em que, entre uma praia e outra, o poema se volta sobre si mesmo: o orum é flagrado no ato reflexivo pelo qual o poema enuncia as condições de sua própria aparição.
É assim que o poeta fala, entre uma praia e outra (entre uma página e outra), ‘por todos e por ninguém’. O retorno reflexivo às condições da enunciação não é o gesto de uma subjetividade autocomplacente; antes, é uma provocação endereçada ao leitor para que se reconheça capaz de dar, como o poeta, ‘um sentido mais puro às palavras da tribo’ (Mallarmé, ‘Le tombeau d’Edgar Poe’). E é num presente que é a co-presença do tempo da escrita e do tempo da leitura que essa iluminação é compartilhada.
Mas como dar ‘um sentido mais puro’ a palavras que servem à exclusão, à divisão e à injustiça? Como o poeta pode falar por todos numa sociedade dividida?
É porque nomeia, com todas as letras, esse obstáculo que a poesia de Ronald Augusto abre uma via intermédia entre o discurso confessional (narcísico, as palavras existem para serem usadas), de que padece boa parte da poesia feita no Brasil, e o feriado perpétuo em que, em uma ou outra praia, nos entregamos à negação ideológica da História e suas vicissitudes. Na contramão desse mau uso da praia em que se inscreve o poema, somos devolvidos ao país dividido que habitamos, e nos reconhecemos habitando, não uma ilha de fruição entre uma praia e outra, mas, em cada praia (em cada página) o cenário de um conflito, e de um esforço, a ser renovado por cada leitor, por sua conta e risco, de resolução desse conflito.
Joaquim Nabuco escreveu que a escravidão ‘tornou, na frase do direito medievo, em nosso território o próprio arservil, como o ar das aldeias da Alemanha que nenhum homem livre podia habitar sem perder a liberdade’ (O Abolicionismo, 1884). Mais de um século depois da Abolição, é o mesmo ar servil que respiramos, e, vagando distraidamente entre uma praia e outra, nem damos por isso. O gesto poético exemplar de Ronald Augusto é um chamado, endereçado a cada leitor, para que desperte desse prolongado sono. Axé!


[1] Paulo Faria é professor de filosofia na UFRGS e pesquisador do CNPq.




***


Sobre Entre uma praia e outra[1]

Carlos André Moreira[2]

Um poeta, como todo criador, não é obrigado a fazer nada que não queira. Mas um leitor consciencioso de poesia talvez pudesse ter o direito de esperar algumas coisas. A saber: rigor de linguagem; diálogo produtivo (e não apenas cosmético) com a longa tradição de uma das mais antigas formas literárias; uma identidade própria, mesmo fazendo referência ao grande arquivo literário, e, finalmente, uma espécie de assombro que é obtida da soma do conjunto mais do que das pequenas conquistas técnicas de cada parte. São coisas que o poeta Ronald Augusto vem oferecendo com consistência a cada novo livro, como Entre uma Praia e Outra.
Ronald Augusto é um poeta em atividade desde os anos 1980 (seu primeiro livro, Homem ao Rubro, é de 1983) que passa por um período de atividade febril nos últimos anos. Se entre No Assoalho Duro, de 2007, e Empresto do Visitante, de 2013, foram seis anos sem um volume de inéditos, desde então ele lançou um livro por ano: Mnemetrônomo (2014), Nem Raro nem Claro (2015), À Ipásia que o Espera (2016) e Subir ao Mural (2017) – neste, já fazia a reinvenção simbólica do mar e do litoral presente no novo livro.
Entre uma Praia e Outra tem sua estrutura anunciada no título. São três agrupamentos de poemas. O primeiro e o terceiro trazem praias como tema de referência. Cada poema é um recorte de uma cena revista por versos que sabem aproveitar conquistas contemporâneas sem abrir mão de certa visualidade ("andorinhas durinhas/ no frio dos fios. // encrespam suas penas para/ espantar o demorado molhado/ da chuva").
No meio desses marcos, poemas de temática e fatura mais esparsa. Há leituras de outros poetas, crítica indignada a estruturas e totens sociais e intelectuais (auto/ denominam-/ se/ ramagens inteligentes e/ todavia/ engatam farfalatório/ num esgalho do pensamento”). Há também espaço para navalhadas na hipocrisia racial ("o preconceito racial vive – abre/ os olhos hiberna numa zona intermédia/ entre o costume história como texto divino/ hábito treta milenar e o reino da estupidez/ congenial ao nascimento/ sentimental intelectual da/ alma – sopro do macaco desnudo depelado").
Como se vê, Ronald Augusto é um autor que leva a sério a ideia de que a palavra não é um signo transparente que deve sair do caminho em favor do sentido. Seus poemas são construídos já na escolha do vocabulário, com uma dicção que critica a oralidade por sua solidez e corrompe sua própria solenidade com escolhas coloquiais. Entre essas duas praias, flui a poesia.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dá licença, meu branco!

Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerância ad eternum , e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem dest

E mais não digo : apresentação

  De tirar o fôlego Guto Leite * Olha! Difícil dizer que o leitor acabou de ler o melhor livro do Ronald Augusto... Até porque se trata de poeta excelente, que vai com firmeza do assombro lírico de À Ipásia que o espera à organização sofisticadamente profunda de Entre uma praia e outra , e crítico atento e agudo, de coerência invejável em matéria variada, para citar Crítica parcial (isso para falar só em livros dos últimos anos). Ok, se não posso dizer que é o melhor livro do Ronald, afirmo com tranquilidade que temos uma espécie de livro de síntese de uma trajetória, de uma posição, de uma acumulação, de um espírito, que faz eco, por exemplo, a obras como Itinerário de Pasárgada , com textos canônicos de Bandeira, ou Sem trama e sem final , coletânea mais recente de Tchekhov, colhidas de sua correspondência pessoal. Com o perdão da desmedida, o livro do Ronald é mais inusitado do que esses, visto que a maior parte dos textos vem do calor da hora do debate das red

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb