Entre
uma praia e outra, de Ronald Augusto (Porto Alegre: Artes&Ecos, 2018)
Ricardo Pedrosa
Alves
“Entre uma praia
e outra” é o mais recente volume de poesia de Ronald Augusto. O livro, com capa
sensacional (fotografia de Fabiano Scholl) e com apresentação de Guto Leite
(que ressalta o vigor da poesia de Ronald, “generosa e inflexível”), e com uma
espécie de posfácio de Erre Amaral (“um voyeurismo de afecções”), é dividido em
3 partes. Aqui, analisarei cada uma delas. Ressalto, porém, que esta é uma
leitura única, não revi minhas pontuações. Ela foi feita no voo entre Porto
Alegre e Curitiba, em fins de 2018. Na capital gaúcha, conheci Ronald Augusto
no I Congresso de poesia da UFRGS. Vim lendo o livro. Na chegada a Curitiba,
bastante turbulência. A leitura talvez se ressinta de tal instabilidade. Agora,
23/04/2019, retomo o livro, revejo minhas anotações ao lado dos poemas. That’s
all Folks!
“uma
praia”
Tanto aqui, como
na última parte do livro, os poemas são numerados. Instala-se uma contagem, uma
rotina, um diário de circunstâncias. As praias, a rigor, são respiros. Entre
elas, sim, na seção “no meio delas”, a vida enquanto abismo retorna. Mas não
aqui. Daí a construção de imagens ser um recurso preferido nas abordagens
praianas do poeta. As imagens, por sua vez, estão engajadas na concepção de
imagem-pensamento (mais imagem-tempo que imagem-movimento, para ficarmos em
Deleuze). Algumas dicotomias (trabalho/lazer, produção/produto, trampo/trampa)
são pensadas a partir do descritivo. Pontos descritivos pontuam o tempo do
pensamento. Há uma cronologia carrolliana, a estrada que historia. Conta-se,
mas em fragmentos: a medida do tempo no “acento fraco”, a “última orla da
madrugada”, o “cômputo de pontes”, o “décimo segundo dia de/ dias de
maroceano”. O poeta que calculava (sabemos o que não é o cálculo de um poeta):
“terei alcançado uma cota de monta/ biografemas”. Sinto nesta “uma praia” um
vazio (“o balbucio marinho que jamais houve”, com “ninguém por testemunha”),
mas pleno de sons (“zumbido rombudo”, “roda maciça long-playing (lp)
obsoleto”). O vazio, de novo, um relógio “sem romanos e sem ponteiros/ de que
se ocupa/ o pensamento”. Ao descrever (a olaria, a salsugem do vento), Ronald
Augusto obtém o vazio. Há um discernimento do deserto, um deserto necessário, a
se valorizar no extremo “de uma dezena de dias com suas noites”. E justo o mar,
a praia, as férias, instâncias de tão fácil celebração, já repisadas até à
indistinção, flores que não são a palavra flor. Penso, por exemplo, em
contraste ao livro do Ronald Augusto, no fraco volume que é Beira-Sol, do poeta
Adriano Espínola (tomo-o como exemplo entre tantos), com sua abordagem
supostamente épica do mar: “O céu/ é uma vela inflada/ ao sopro salobre das
ondas”. Ou, também de Espínola: “O azul é um animal marinho,/ dormindo na
praia/ do Mucuripe.” Em Espínola tudo se afirma, tudo se nomeia à superfície.
“no
meio delas”
Entre “uma
praia” “e outra”, há a seção “no meio delas”. Contrapõe-se muito ali a
violência do mundo a um rigorosíssimo encanto pela palavra rara, gesto radical
que repõe violentamente a poesia à banalidade do mal do mundo. Assim, contrasta
“nenhum bem deste mundo me sobra” (polo da violência) a “(glossógrafo quando já
não trova” (polo da violência a partir da poesia). Essa violência é fanoniana,
diga-se (“xingou e foi/ xingado”. Ao entrar no mundo da vida, porém, há alguns
estranhamentos difíceis para a minha leitura. Alguns direcionamentos me
incomodam, aqui e ali, os “recados à má literatura”, como rabisquei quando lia
o livro (páginas 29 e 30, particularmente), ou à má política (página 43).
Prefiro quando o polo da violência da poesia não tem referente: “chego
soerguendo-/ me/ até a bolsa/ mais cava do meu/ crânio”. A violência, aqui, é
um dado permanente e quase uma espera ou inevitabilidade.
“no meio delas”,
porém, não é só violência, trazendo uma beleza sem afirmação viril, como o
“encosto que se anagramatiza” ou todo o poema “dois do dois: olomí” (imagens
doces, memória doce), quando o pensamento se encurva melífluo, aconchegado na
herança negra. A afrodescendência se anagramatiza (só eu pensei em Said no
início do trecho a seguir?): “a espada e a palavra armas/ de jorge/
wordswordswords/ swords/ parolagem brasa assoprada sem coração”. O encontro com
a herança é vivência da violência, a ser resolvida também num contrato com o
além de nós (Racionais MC’s, pensei aqui, mas também em publicações
sociológicas, como o Mapa da Violência: o assassinado jovem, negro, de periferia):
“aparta-nos ogum de retrato e/ de sol quadrado”. Ronald Augusto sabe que a
guerra, nas suas armas que são as da poesia, é também cultural. Há, nisso, um
elogio da música como pensamento no exercício da poesia como (auto-)crítica no
poema “espiral zeosória”. Nele, diferentes níveis de expectativa são
contemplados, do menos ao mais “hermético” (para usar uma palavra da moda). O
elogio a Edimilson de Almeida Pereira aponta para o que pode ser lido como
projeto de Ronald Augusto: “dessa dialética do oximoro/ o livro finta parece
perder as estribeiras/ mas logo ali/ incrivelmente se concentra/ embicando
sempre por negaceios”. Edimilson e Ronald articulam um rombo no cânone dos
mesmos brancos e o fazem num caminho que não traz a escrevivência ao primeiro plano.
Música do pensamento. A vivência do Brasil racista, de outro lado, traz como
inevitável “o retorno” (título do último poema da seção), poema que abre “o
preconceito racial vive abre/ os
olhos hiberna numa zona intermédia”. Hoje? Sim, bastante. Deputada baiana
querendo acabar com cotas raciais. Instituto Moreira Salles e evento de poesia
só com brancos. Bolsonaro. Ronald, como Ricardo Aleixo, como Fernanda Bastos,
devolvem fanonianamente, com violência, pois, o “re-tornar em visitação
pública”, o mundo do “imêmore”. O racismo do Brasil (e do mundo) portanto,
convocam ao “retorno”, ele é uma permanência a interpelar o poeta negro. Mas
há, como veremos ainda, a outra praia.
“e
outra”
Confesso ter
anotado menos aqui. Como disse no início, o avião estava para cair. Retomar a
leitura no conforto da mesa, agora, seria injusto com as abordagens das seções
anteriores. Muito se perde, sei, mas sou crítico com manias. Penso que Ronald
Augusto tem no livro uma relação desajeitada (espectadora) com a praia, o que é
um ganho poético. As imagens pensam, bem como todo o arranjo fônico dos poemas.
As coisas da “outra” praia também se anagramatizam. A “lixa plurilíngue que/
descarna e treslê o lixo peregrino/ dos subúrbios”. Os poemas se helenizam, há
um clima provençal implícito nas circunstâncias. O poeta (negro) pode curtir?
Aí a força do livro do Ronald Augusto. Há uma felicidade otimista, que ironiza
o “sórdido herói”. Poder sonhar na praia, pode? (há toda uma lição do poético
liberto em Gilberto Gil no livro): “manada de sonhos rapsódia/ circundada por
ondas”. O próprio mar é ironizado, sendo tanto “ferruginoso” quanto povoado por
“fluctissonantes praias”. As imagens dessa seção preparam já um trabalho de
memória (a praia passará, retornará o caos do cotidiano). A imagem usada para
trazer a praia mostra o tênue do respiro que as praias são. É um momento
absurdo de bonito do livro: “o caranguejo que meu filho/ (do meio) quer levar
para a cidade/ num compartimento da mochila/ junto com um dois palmos/ de areia
para que o animalzinho/ não se esqueça de onde veio”. Precisamos de praias
assim na poesia brasileira! Isso é puro Bandeira! Um elogio do efêmero, do
guardar, da herança, da poesia menor.
“aurora
de tranças grisalhas
manhã
sem ver sol sequer praia
mar
e calor retardatários
na
pele não resta salário
os
girassóis da casa em frente
o
lixeiro sempre presente
dizem
que tudo permanece
tal
e qual, mas quem se convence?”
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