Pular para o conteúdo principal

a voz pública da poesia, entrevista



[arte de daniel rosa dos santos]



Entrevista do editor à Carolina Veloso, estudante de literatura da UFSC que prepara artigo sobre o blog A Voz Pública da Poesia.



Carolina Veloso – Como surgiu a ideia de criar um blog de poesia independente?

Ronald Augusto – Não é um blog de poesia independente. É um blog cuja pretensão é apostar na poesia política. Um espaço para o exercício de uma dimensão do fazer poético que não teme a imersão radical e crítica no presente nem a parcialidade de situar-se em termos históricos e políticos. Nos últimos cinco anos a vida político-social brasileira deu uma guinada desconcertante para a direita mais absurda possível, isto é, aquela que, ao mesmo tempo, consegue ser burra e violenta. Quando isso começou a tomar forma (digamos que do impeachment de Dilma pra cá) comecei a perceber que muitos poetas se mostravam soberanamente indiferentes aos sinais do que iniciava a surgir, era como se usassem luvas de pelica; seguiam fazendo seus poemas tão inofensivos quanto poeticamente corretos. Então, numa tarde de domingo, em conversa com amigos, falei sobre a minha indisposição com esses poetas isentões, fleumáticos diante do estado de coisas em que estávamos e estamos mergulhados; aventei a possibilidade de fazer algo, tamanha era a minha indignação. No mesmo dia, já no fim da tarde, criei a página no FB. Na manhã seguinte nasceu o blog.

CV – Como funciona a organização do blog e a seleção dos colaboradores/poesias? 

RA – Comecei convidando poetas que também experimentavam a mesma inquietação, a mesma disposição em promover uma narrativa poética coletiva que fosse capaz de denunciar o clima autoritário e reaça que estava a surgir. Depois um poeta foi indicando outro e mais outro e a coisa começou a andar meio que por conta própria. No início havia poucas poetas, então convidei a Adriane Garcia pra fazer um chamamento às mulheres, isso também ampliou a diversidade. O critério que eu procuro seguir para a escolha dos poemas envolve conciliar o gesto poético inventivo e a contundência mais crua possível em relação ao enfrentamento político. A salvaguarda superciliosa da “qualidade literária” não me interessa; o blog se inclina mais para o hard do que para o soft da poesia. Para quem não conhece a linha do blog adianto que os poemas devem ser de luta contra a onda reacionária (racismo, machismo, homofobia, transfobia, fanatismo religioso etc) e contra o governo Bolsonaro que, afinal de contas, sintetiza tudo isso. Quando topo com um poema porreta nas redes sociais (os poetas publicam muito aí) eu chego e pergunto se posso levar para o blog. Muitas vezes nem conheço bem o poeta ou a poeta, o que vale é o poema realizar aquela combinação da qual falei linhas acima. Às vezes os poetas me enviam algo que vai ao encontro da nossa linha editorial. Já recusei bons poemas não-políticos de amigos. Não abro mão do critério combativo que pensei para o blog.

CV – Os poetas são convidados ou não há ligação entre o editor e os poetas?

RA – Como dá pra ver pela resposta acima é uma combinação das duas alternativas. O que mais me agrada é quando publico poetas que não são meus amigos, ou seja, que ainda não conheço muito bem.

CV – As redes sociais aparecem atualmente como um meio alternativo para os artistas independentes. Nesse sentido, você considera as redes sociais enquanto um importante veículo e ferramenta  para a literatura contemporânea? Principalmente, no que diz respeito as editores independentes que vão contra a corrente mercadológica das editoras "oficiais"? 

RA – Acho que sim, as redes sociais, blogs, todos esses dispositivos virtuais, são fundamentais para as atividades e reflexões tanto de poetas e escritores em busca de afirmação, como de escritores já entronizados. O mesmo vale para as grandes e pequenas editoras em suas relações comerciais e também no contato com os leitores. As grandezas nas formas de investimento são, obviamente, bem diferentes, mas todas editoras, “oficiais” ou não, precisam beber dessa água.

CV – Quem é o leitor do blog? Tem alguma ideia sobre a receptividade e alcance do blog? Já foi realizada alguma pesquisa sobre esses dados? Ou você recebe retorno dos leitores?

RA – É o leitor que gosta de poesia. O leitor que aprecia a diversidade de vozes. O leitor-cidadão que não transige com nenhuma forma de autoritarismo. Não faço um acompanhamento profissional do alcance do blog. Dou uma olhada nas estatísticas e constato que as visualizações são regulares e com bom número de leitores. Como são muitos os poetas publicados, o blog está ficando conhecido em várias regiões do Brasil e também no exterior. A professora Regina Dalcastagnè (UnB) tem se revelado uma grande entusiasta e divulgadora do blog.

CV – Você considera o blog como uma ferramenta de resistência literária?

RA – É apenas mais uma ferramenta, um veículo, um suporte expressivo adequado às condições do nosso tempo.

CV – O que te motiva a dar continuidade a esse trabalho?

RA – Desafortunadamente, o governo Bolsonaro. O Poste da Ku Klux como prefiro identificá-lo. Enquanto a direita obtusa, de caso pensado com o fascismo, estiver dando as cartas com o suporte do ultraliberalismo, A Voz Pública da Poesia continuará sendo ouvida.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dá licença, meu branco!

Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerância ad eternum , e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem dest

E mais não digo : apresentação

  De tirar o fôlego Guto Leite * Olha! Difícil dizer que o leitor acabou de ler o melhor livro do Ronald Augusto... Até porque se trata de poeta excelente, que vai com firmeza do assombro lírico de À Ipásia que o espera à organização sofisticadamente profunda de Entre uma praia e outra , e crítico atento e agudo, de coerência invejável em matéria variada, para citar Crítica parcial (isso para falar só em livros dos últimos anos). Ok, se não posso dizer que é o melhor livro do Ronald, afirmo com tranquilidade que temos uma espécie de livro de síntese de uma trajetória, de uma posição, de uma acumulação, de um espírito, que faz eco, por exemplo, a obras como Itinerário de Pasárgada , com textos canônicos de Bandeira, ou Sem trama e sem final , coletânea mais recente de Tchekhov, colhidas de sua correspondência pessoal. Com o perdão da desmedida, o livro do Ronald é mais inusitado do que esses, visto que a maior parte dos textos vem do calor da hora do debate das red

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb