Pular para o conteúdo principal

Miscelânea de algumas semanas




Miscelânea de algumas semanas

Ronald Augusto[1]

Na esportiva

Tudo vai bem quando o time dos seus grandes amigos está numa situação pior do que a do seu. Porque quando a situação não é bem essa, é muito chato controlar a vontade de vê-los balançando numa árvore à beira do rio, afinal de contas, são seus camaradas. Acontece que aquele sorriso no rosto deles, enquanto oscilam ao sabor do vento, compensa todo constrangimento. Amigos para sempre.

Ideia de girico

Um gaúcho desvairado (redundância) imaginou uma cuia portentosa como alternativa à proposta da roda gigante na orla do Guaíba, ele se baseia no seguinte argumento: “melhor algo da nossa cultura do que da cultura inglesa”. Vamos elucidar dois pontos: 1. roda-gigante não é criação dos ingleses; e 2. mesmo que fosse, o futebol, por exemplo, não foi inventado pelos brasileiros, no entanto está entranhado em nosso imaginário cultural. Não basta ser brega, tem que ser burro para apoiar algumas façanhas.

Melhor fala quem melhor cala

Não faz muito o Jornal da Band apresentou uma série de reportagens sobre as atividades dos militares nos rincões do Brasil. Uma patriotada para justificar o regime especial da Reforma da Previdência para as Forças Armadas. Em uma dessas matérias um militar fala sobre sua experiência no Brasil profundo nos seguintes termos: “o pessoal pensa que na Amazônia    tem onça e índio, mas não é assim, aqui tem gente que nem nós...”. Essa é a tradição da qual o presidente Bolsonaro é um filho legítimo. Ou malparido.

Frente democrática?

Fazer oposição ao governo Bolsonaro imitando o estilo do Bolsonaro para tentar seduzir os fanáticos seguidores de Bolsonaro. Isso parece ser o cirismo atualmente.

Ficamos bradando para nós mesmos: a farsa do impeachment acabou, a farsa da Lava Jato acabou etc. O estrago já foi e segue sendo feito. A onda neofascista e a destruição de direitos ainda vão longe. E diz que vem aí a “esquerda conservadora”, tão antipetista quanto o atual governo.

Uma frente democrática que não quer conversa com alguns setores da esquerda que sempre defenderam a democracia. Oi?

Jornalismo de mentirinha

O jornalismo da Globo está num mato sem cachorro. A #vazajato não pode mais ser negada. Quanto mais seu jornalismo bate (com razão ou por interesse) no presidente Bolsonaro, mais vergonhosa e humilhante se torna a cara de paisagem do Moro. Como é que o superman aceita isso daí? Onde se segurar, Globonews? Nos plissados de dois ou três ministros do supremo? A Globo logo terá de se retratar, tal como fez quando reconheceu o erro do apoio ao golpe de 64.

“A Lava Jato é um patrimônio nacional. Tirando os abusos, tirando os excessos e as ilegalidades, deve ser mantida”. Comentário de um advogado criminalista na bancada do Jornal da Cultura. Acontece que abusos, excessos e ilegalidades são traços constitutivos dessa operação.

Sem título

Na saideira, Dodge, a sinhazinha, virou guerreira.

O leitor crédulo

O leitor consegue suportar um livro ruim em prosa, vai até o fim; listas dos mais vendidos comprovam isso. Mas um livro de poesia, nem digo ruim, mediano, é intolerável. Muito leitor não percebe no momento. O rebote vem com o tempo. Alguém já afirmou com otimismo que “um livro de poesia na gaveta não adianta nada”. Se é ruim, não há lugar melhor para ficar. Pior do que poesia ruim é poeta chato que fica falando da sua mais recente obra, assim, bem perto da cara da gente. Meu...

Disco arranhado

Quando a pessoa faz literatura negra? Sempre? Apenas quando se predica (se reconhece) negro? Quando lança mão de elementos da cultura afro? Quando faz ativismo (ou escreve) contra o racismo? E quando esses quesitos são atendidos de forma intermitente? Quem é o poeta palestrinha daqueles que não têm voz? Me aborrecem coisas do tipo: o poeta do povo negro, o Dante negro. Um dia resgatarei o poeta do povo branco, o Solano Trindade branco. Castro Alves era chamado “o poeta dos escravos”.  Quem seria então o poeta dos senhores?

Quando me deparo com coisas como, por exemplo, rappers conservadores ou de direita, confirmo que essa noção de que a poesia salva ou liberta é pura mistificação. Vejo selfies de poetas jovens (e dos que ainda tentam aparentar juventude) e penso: na idade deles eu também era assim marrento?

A culpa é do patrão e ele põe em quem ele quiser

A predação capitalista e o mercado sempre estressadinho inventaram a disciplina “educação financeira”. Agora sabemos que nosso endividamento, nossa pobreza e nossa fome são porque nunca demos bola para as regras de como lidar com o dinheiro. Abençoadxs, vamos estudar direitinho que tudo melhora.

Autocrítica

Algumas coisas a propósito da autocrítica que os moralistas e moristas de ocasião sempre cobram da esquerda. Há pouco, no programa Roda Viva, Flávio Dino foi convidado a cometer esse gesto.

Abro um parêntese para ilustrar o problema. No filme que abre a trilogia The Godfather, há um momento em que Michael Corleone, já assumindo o comando da famiglia, precisa resolver um problema com o seu cunhado que, além de tê-lo traído, batia em sua irmã. Michael o coloca contra a parede e o convence a admitir sua culpa e, portanto, que o traiu. Michael promete que não vai machucá-lo, pois não quer que sua irmã se transforme em viúva e ordena que vá embora pra outra cidade e que nunca mais retorne. Quando o cunhado entra no carro que o levará para longe, é executado pelos membros de confiança do jovem Godfather. Corolário: a mea culpa exigida por Michael era uma contrafação perversa. Fecho o parêntese.

Em nossa história a direita sempre chegou ao poder através de golpes. Entretanto, ninguém, sobretudo nosso jornalismo entreguista, exige que a direita faça a sua mea culpa.

Uma coisa, outra coisa

Ainda tem gente que acha que Lula e Bolsonaro são a mesma coisa, que só estariam provisoriamente, por exemplo, em lados opostos de um campo de jogo. No próximo tempo apenas trocariam de lado, para nossa desgraça. Os que pensam assim são os mais perigosos. Os isentões. E não vão para lugar nenhum. Não chovem nem saem de cima.

Você não precisa beber o conteúdo inteiro de um barril para saber se está cheio de vinho ou vinagre. Para os isentões tudo é vinagre. Exceto o hidromel que um dia lhes será facultado por Zeus tronitroante.

O autor e a obra

O mais ridículo nessa anedota (trecho de seu livro de memórias) contada por Rodrigo Janot à Folha não é o revelação de que planejou o assassinato do Gilmar Mendes e que, se o fizesse, depois cometeria suicídio; o mais ridículo e canalha foi ele ter dito que a mão de Deus, já nos acréscimos, o impediu de fazer tamanha loucura. Deus é mais.

O supremacista branco do Sítio

O racismo de Monteiro Lobato é fruto do seu tempo. Dizem seus seguidores. Dizem isso deixando mais ou menos implícito que Lobato, hoje, não seria racista? Engraçado, como se hoje estivéssemos mergulhados num tempo pós racial. Hoje (e assim era no tempo de Lobato) há racismo, mas nem todos dessa laia são supremacistas da KKK. Aliás, como já ficou provado, Lobato era um supremacista branco decepcionado com o fato de o Brasil não ser capaz de abrigar uma sucursal da Ku Klux Klan.

O ruim é enfrentar a realidade de que seguimos negando nem tanto o racismo desse escritor, mas, o que é mais grave, seguimos, sim, negando principalmente nossas relações e estruturas sociais racistas. Defender, relevar o Lobato supremacista é, no limite, nada mais do que isso: acreditar na fábula de que somos uma nação que jamais assassinaria cinco crianças negras apenas porque seriam negras. O Brasil é uma coisa do passado.

Curioso é que no início da década de 1930 (época do Lobato também) aqui no Brasil, em São Paulo mais precisamente, negros se reuniram e criaram a Frente Negra, organização que durou até 1937. No mínimo podemos dizer que as ideias racistas e eugenistas foram enfrentadas e combatidas, isto é, a recusa ao racismo também fazia parte dessa época.

Como jamais tivemos uma Ku Klux Klan formalmente constituída (para a frustração de Monteiro Lobato), o nosso racismo projeta seu caráter supremacista criando estruturas excludentes, sequestros de oportunidades, desemprego, gentrificação, invisibilidades e violência policial contra os negros. Uma criança foi assassinada. Entretanto isso é inseparável do fato de que é a quinta criança negra a morrer pelas mesmas causas e em circunstâncias muito parecidas. Não é casual. Não é propriamente trágico, no sentido em que seria algo inesperado. É sombriamente rotineiro.


[1] Ronald Augusto é poeta, letrista e crítico de poesia. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dá licença, meu branco!

Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerância ad eternum , e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem dest

E mais não digo : apresentação

  De tirar o fôlego Guto Leite * Olha! Difícil dizer que o leitor acabou de ler o melhor livro do Ronald Augusto... Até porque se trata de poeta excelente, que vai com firmeza do assombro lírico de À Ipásia que o espera à organização sofisticadamente profunda de Entre uma praia e outra , e crítico atento e agudo, de coerência invejável em matéria variada, para citar Crítica parcial (isso para falar só em livros dos últimos anos). Ok, se não posso dizer que é o melhor livro do Ronald, afirmo com tranquilidade que temos uma espécie de livro de síntese de uma trajetória, de uma posição, de uma acumulação, de um espírito, que faz eco, por exemplo, a obras como Itinerário de Pasárgada , com textos canônicos de Bandeira, ou Sem trama e sem final , coletânea mais recente de Tchekhov, colhidas de sua correspondência pessoal. Com o perdão da desmedida, o livro do Ronald é mais inusitado do que esses, visto que a maior parte dos textos vem do calor da hora do debate das red

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb