Pular para o conteúdo principal

sem romantizar o isolamento





Sem romantizar o isolamento
Ronald Augusto[1]


Entrevista conduzida pelo jornalista Igor Natusch publicada no caderno Cultura do Jornal do Comércio/RS. No link, a versão editada da entrevista:


Como o isolamento causado pelo coronavírus tem influenciado na tua atuação criativa? Mudou alguma das tuas rotinas? Tens tido mais ideias para escrever ou, ao contrário, a situação tem atuado contra a tua criatividade? Como tens te sentido nesses dias?

O isolamento social não afetou meu modo de escrever poemas. Há muitos anos trabalho mais em casa mesmo. Além disso, minha forma de produção é lenta, demorada, e por isso é também escassa. Meu livro Entre uma praia e outra, que ano passado recebeu o Prêmio Minuano de Literatura, categoria poesia, é um conjunto de poemas que já estava pronto há mais de 10 anos. Ficar em casa não é especialmente inspirador para mim e, do mesmo modo, antes do confinamento, quando podíamos ir e vir sem preocupação, eu não entendia (e ainda não entendo) essa condição como mais favorável à criação de poemas. A impressão que eu tenho com relação à minha criatividade é a de que ela vem diminuindo. A desconfiança é mais forte. Já não fico satisfeito facilmente nem com os meus, nem com os poemas alheios.

Estás com algum projeto literário, musical etc em andamento? Se sim, o que seria?
                                                             
Estou finalizando os trabalhos (espero) com dois editores, um de Porto Alegre e outro de São Paulo, de dois livros, um de ensaios e outro de poesia. A fase é de revisão e ajustes. Infelizmente, com a pandemia e a quarentena, as coisas foram interrompidas. Aguardo os desfechos. Sigo fazendo remotamente minhas oficinas e cursos de literatura. Às vezes escrevo uma e outra letra de música para melodias dos parceiros Álvaro Rosa Costa e Marcelo Delacroix, excelentes músicos e compositores. Quase não toco no meu violão. Sei que é bom tocar um instrumento, mas há tempos ando sem vontade.

Ficar trancado em casa, por si só, gera poesia? Onde se esconde a poesia numa situação de isolamento? Ou talvez seja possível questionar esse conceito de "poesia do cotidiano", ao menos em alguns aspectos?

Cada poeta tem suas mitologias ou manias em relação àquilo que pode disparar o processo da criação do poema. Do meu ponto de vista, a poesia não se esconde; essa imagem sugere que o fenômeno poético é um mistério que se fecha sobre si mesmo e o poeta é essa criatura que tem a chave (talvez por uma graça divina) para libertar a poesia. A esse propósito recordo uma aposta do poeta catalão Joan Brossa apresentada em entrevista (a um programa de televisão) dedicada à suposta dificuldade da poesia não verbal que ele praticava. Diante da aparente impenetrabilidade de um poema visual, sem o menor indício de informação verbal, o entrevistador pede para que Joan Brossa “abra a porta do poema” de modo a introduzir o leitor nesse universo desconhecido, ao que Brossa rapidamente responde: “mas a porta está sempre aberta”. A poesia não está oculta em parte nenhuma. Poesia é e está na linguagem. O conceito de “poesia do cotidiano” é tão irrelevante quanto, por exemplo, o conceito de “poesia metafísica”, isto é, esses modos através dos quais a atividade da poesia se dá, são justificados pela multiplicidade de poetas e seus interesses de linguagem. Cada poeta engendra e suporta uma forma ou voz poética particular. O que interessa é como fazer com que essas singularidades se manifestem na materialidade mesma da linguagem.

Estar em isolamento é geralmente associado com angústia, tristeza, sensações sombrias. Mas será esse o único tipo de estado de espírito trazido por uma quarentena? Será possível achar humor, euforia, ironia em um cenário do tipo? Se sim, qual seria o "atalho", na tua visão?

Essa descrição de como é experimentada a situação de isolamento não se aplica a todos e nem a todas as situações. A quarentena decorrente da pandemia tem um aspecto que não se limita exatamente com os sentimentos clássicos da tristeza ou da angústia; a decisão pelo auto-isolamento pode produzir uma espécie de satisfação moral por conta de ser uma atitude que não é benéfica apenas para mim, mas também para outrem e, sobretudo, para a comunidade. Podemos interpretar como um gesto de solidariedade. No meu caso em particular, o isolamento não admite um só momento de tédio, afinal, temos, eu e Denise, uma menina de 11 meses que não nos dá um minuto de descanso. Ela sairá da quarentena como bípede. Nosso isolamento é repleto de trabalho e alegria. Um atalho? Tenham filhos.

E quanto ao isolamento entre seus pares, digamos assim? Li algumas entrevistas tuas do passado e nelas havia menção a isso, a uma certa falta de conexão e identificação com "os (teus) iguais", além de um certo distanciamento temático e de forma. Será essa uma outra camada do isolamento do artista e do poeta - ou ao menos do teu isolamento, enquanto pessoa que cria arte?

O isolamento a que você se refere, que tem a ver com as condições de possibilidade para um escritor negro obter algum reconhecimento no campo literário, diz respeito ao falso teor meritocrático do sistema, isto é, nessa rede de relações não será propriamente o melhor a alcançar tal reconhecimento. Em literatura, um campo historicamente ocupado por brancos, quem normalmente é objeto de estima e prestigiamento é o igual, isto é, o escritor branco. A sala de estar da literatura não é infensa ao racismo estrutural de nossa sociedade que segrega o negro. A carência de “qualidade estética” muitas vezes é jogada na cara daqueles não-brancos que, segundo essa lógica, ainda precisariam trabalhar mais para serem considerados como iguais. O escritor negro é mais um estranho do que um igual. O argumento meio clichê da qualidade literária, por exemplo, tem servido muito mais para manter uma espécie de reserva de mercado para beneficiar os escritores da branquitude, do que para estabelecer algum modelo de julgamento para a diversidade das poéticas que experimentamos.    

Aquela imagem romantizada do escritor como incompreendido, como alguém que anda sozinho nas multidões, um isolado entre os seres humanos... Isso faz algum sentido para ti? Ou pensas que é bobagem?

É uma tremenda bobagem. Infelizmente, a arte é uma das atividades humanas onde mais se tolera toda sorte de mistificações. Muitos artistas ingênua ou maliciosamente ajudam a promover esse tipo de coisa. Por isso que diante de várias controvérsias surgidas no interior do debate cultural, eu prefiro me manter cético ou colocar sob suspeição a noção segundo a qual a arte serve como instrumento de transformação do homem e da sociedade.

Por outro lado, é possível que a situação de ter que ficar o tempo todo em casa, de certo modo, aproxime as pessoas do escritor? Além da busca por produtos culturais para passar o tempo, a possibilidade de ter mais tempo para pensar pode despertar sensibilidades poéticas adormecidas ou atrofiadas pelo andamento dos dias?

Não sei. Acho que essa ideia parece ir ao encontro da romantização da situação de isolamento: o claustro como indutor da meditação e do autoconhecimento etc. A questão não é se aproximar do escritor. Aliás, não há garantia de que isso, aproximar-se dos sentimentos do autor, facultará ao leitor uma fruição satisfatória do texto criado por esse virtual escritor. Eu, como leitor, prefiro me aproximar apenas do texto, enfrentar os dilemas do discurso, da prosa e do verso em sua condição de coisa verbal que produz sentidos e elipses. Cada um, a princípio, sabe como lidar com seu desejo e sua frustração durante a quarentena. Eu vejo séries, filmes, preparo aulas e leio um pouco. Sempre sonhamos com mais tempo para finalmente lermos aquela grande obra, assistirmos aquele clássico do cinema, porém não há mais tempo. Não temos mais, aliás, nunca tivemos autoridade sobre o tempo do capital.

E ler poesia? Há alguma leitura que, na tua visão, pode ser adequada (não necessariamente animadora de espíritos, mas adequada) ao leitor ou leitora que precisa ficar dentro de casa?

Não costumo indicar um livro de poemas na perspectiva de que talvez venha a servir para algum objetivo prático ou circunstancial. Repudio toda e qualquer forma de instrumentalização da arte. Indico sempre – e durante e depois da quarentena – a leitura da poesia de Manuel Bandeira, qualquer livro dele, sem mais.




[1] Ronald Augusto é poeta, letrista e crítico de poesia. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dá licença, meu branco!

Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerância ad eternum , e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem dest

E mais não digo : apresentação

  De tirar o fôlego Guto Leite * Olha! Difícil dizer que o leitor acabou de ler o melhor livro do Ronald Augusto... Até porque se trata de poeta excelente, que vai com firmeza do assombro lírico de À Ipásia que o espera à organização sofisticadamente profunda de Entre uma praia e outra , e crítico atento e agudo, de coerência invejável em matéria variada, para citar Crítica parcial (isso para falar só em livros dos últimos anos). Ok, se não posso dizer que é o melhor livro do Ronald, afirmo com tranquilidade que temos uma espécie de livro de síntese de uma trajetória, de uma posição, de uma acumulação, de um espírito, que faz eco, por exemplo, a obras como Itinerário de Pasárgada , com textos canônicos de Bandeira, ou Sem trama e sem final , coletânea mais recente de Tchekhov, colhidas de sua correspondência pessoal. Com o perdão da desmedida, o livro do Ronald é mais inusitado do que esses, visto que a maior parte dos textos vem do calor da hora do debate das red

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb