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fortuna critica : Ronald Augusto abre alas à palavra autoral




Ronald Augusto abre alas à palavra autoral

Paulo Fabris[1]

Entre uma praia e outra (Editora Artes & Ecos, 2018) de Ronald Augusto acontece como uma festa imodesta, entre cômoros e vegetação espessa, entre a prosa e a poesia dos pagos, ali onde um insuspeito rastreador talvez notasse marcas na areia de Pound. Mas quem o chama para um papo reto é Oliveira Silveira, enquanto a silhueta de Manuel Bandeira é vista em meio à sombra e Mallarmé desponta como uma estrela atrás dos morros. Entre uma praia e outra faz a entrega de poemas artesanais, com palavras cozidas no barro e temperadas com o sal da terra. Escolho, como amostra grátis, um dos poemas do livro, o da pág. 55:

sombra da garagem
abre alas à passagem
do sopro do mar

fosco calor onde afundo
enorme mas tão caprichoso
quanto a imagem
que maruja na concha
do meu ouvido

A leitura do livro me fez lembrar uma matéria de Haroldo de Campos com o poeta europeu (iugoslavo) Vasko Popa, publicada num antigo caderno Mais da Folha de São Paulo. Haroldo de Campos faz a transcriação, em conjunto com o autor, de um poema de Popa em que ele mostra seu espanto com a natureza exuberante do país, onde recém aportara. Poema de modernidade fragmentada, jogo de espelho com Ronald Augusto, primeiras palavras de aproximação com o desconhecido continente:

MONUMENTO AO OXIGÊNIO

um vinho rubro-terra me destina
a este país-braços-abertos
do coração do qual frondeja
a árvore da vida de olhos verdes

respira e assim anima
- exânime - uma estrela

me aterrorizam monumentos
grandes fantoches sobre-erguidos
com frio e fogo e outras - invisíveis – armas

em parte alguma jubilou-me
um monumento ao oxigênio

todo armado de folhas
de flores e de frutos
e de outras verdades maduras


Mas o que pretendo frisar já foi dito muitas vezes e em ocasiões variadas. O próprio Carlos Drummond de Andrade, nosso venerado poeta (da Capital) federal, se manifestou sobre o assunto em alguns poemas, entre eles em Procura da Poesia, mesmo que neste, contraditoriamente, a linguagem encontre-se mais próxima da prosa:

            Chega mais perto e contempla as palavras.
            Cada uma
            tem mil faces secretas sob a face neutra
            e te pergunta, sem interesse pela resposta,
            pobre ou terrível, que lhe deres:
            Trouxeste a chave?
Ernesto Sabato, em Uno y el Universo, por outro lado, observa com seu telescópio de escritor e físico renomado, uma das facetas da mimese na literatura, ao comentar sobre o chamado “Espelho de Stendhal”: Suponiendo posible la reproducción fiel del mundo externo, no veo para qué esa inútil duplicación. Muchos se proponen em este desatinado oficio de papel carbónico con tanta fúria como ineficácia, por ignorar que el hombre es un papel carbónico que presta a la realidade externa su proprio color. Otros pretenden engañarse a sí mismos y a los demás reivindicando oficio de espejo y respaldando sus pretensiones con el inevitable espejo de Stendhal. Artefacto bastante mentiroso, por certo; al menos el utilizado por su inventor. Duas décadas antes, em 1925, Ortega y Gasset, já ia direto ao assunto: Vida é uma coisa, poesia é outra... O poeta começa onde o homem acaba. O destino deste é viver seu itinerário humano; a missão daquele é inventar o que não existe. Desta maneira se justifica o ofício poético. O poeta aumenta o mundo, acrescenta ao real, que já está aí por si mesmo, um irreal continente. Autor vem de ‘auctor’, aquele que aumenta. Os latinos chamavam assim ao general que ganhava para a pátria um novo território.
Ronald, desde muito cedo, aprendeu a passar ao largo, e não fez suas andanças sem muita leitura e discernimento, no longo tempo em que se dedica à feitura de poemas e à tarefa de agitador crítico, músico e professor itinerante. Não se contenta com leitura e escrita fáceis. Trabalha nos limites da palavra, nas clivagens e fissuras entre elas, na doma com rédea curta e no acerto de contas com a História e a Literatura, enquanto, nos intervalos, bebe cerveja com os amigos em frente a uma livraria de calçada.
Entre uma praia e outra é mais do que preto no branco, mais do que travessia difícil, mais do que entrevero de linguagem, mais do que subversão, passa ao largo da aparente simplicidade, sugerida, a título de despiste, na foto da capa de Fabiano Scholl e no projeto gráfico e diagramação de Roberto Schmitt-Prym. E ainda por cima arrebatou um prestigiado prêmio em 2019, o Minuano de Literatura na categoria poesia, patrocinado e promovido pelo Instituto Estadual do Livro/RS e pelo Instituto de Letras da UFRGS.








[1] Minha formação profissional é na área da medicina (atuo como médico do trabalho desde 1990), mas as primeiras aventuras literárias se deram no Colégio Marista Rosário, nos anos de 1974 a 1976, na companhia de Mario Pirata e outros colegas, quando, entre outras aventuras, criamos o Grupo Almas e Lamas. Pouco tempo depois participei dos livros coletivos Paisagens e Teia2. Como estudante da faculdade de Letras da UFRGS, nos anos 80, participei de seminários e oficinas literárias, coordenadas pela profª. Lígia Averbuck; oficineiro aplicado tive ainda como outros orientadores a profª Lea Masina, Ricardo Portugal e Ronald Augusto. Nos anos 90 iniciei a participação no Grupo Quixote (com Silvio Duncan, Fernando Castro, Haroldo Ferreira, Vítor Biasoli, Jaime Cimenti, Maria Alice Bragança e convidados). Entre os anos 90/2000 tive poemas selecionados para veiculação em ônibus de Porto Alegre, assim como vários outros publicados em jornais, revistas e livros coletivos. Desde 2015 publico regularmente poemas e prosa em página do Facebook.


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