Poesia ruim, Copa de 70 e arrependidos
Ronald
Augusto[1]
Como vou saber se um poema é bom ou
ruim? Você não precisa ingerir todo o conteúdo de um barril para dizer se ele
está cheio de vinho ou de vinagre.
Por que, por um lado, somos tão severos
e críticos com opiniões infundadas, com terraplanistas, com bolsonaristas
orgulhosos da própria estupidez e, por outro lado, toleramos e passamos pano
para poetas medíocres e poemas ruins, chegando, inclusive, a curtir essas
manifestações?
A indiferença à verdade e ao
conhecimento, seja relativamente à vida vivida, seja ao pensamento, deve ser
tão criticada quanto a leniência (irrigada pelas redes sociais) com que
tratamos o aparecimento de tanta poesia avinagrada.
O pacto com as ideias falsas e a
cumplicidade com as práticas poéticas de péssima qualidade deveriam acabar no
mesmo saco.
*
Num surto de saudade, dias atrás assisti
na íntegra a final da copa do mundo de 1970. Tirante os gols e alguns momentos
reprisados à exaustão, aqui é acolá, acho que foi a segunda vez que vi todo o
jogo. Eu tinha 8 ou 9 anos quando o assisti pela primeira vez. Morava em
Niterói, Rio de Janeiro. Vila militar da Fortaleza de Santa Cruz. Coisas que
percebi assistindo a partida histórica, segue uma enumeração bem incompleta: (1)
o time da Itália era muito perigoso; não era uma galinha morta; bons
contrataques; (2) os jogadores de defesa da seleção canarinho eram muito bons;
esquecemos deles facilmente, Everaldo, por exemplo, jogava com eficiência e me
pareceu um belo jogador; (3) nas faltas com barreira o juiz não contava os
passos para montá-la, os jogadores obedeciam a seus gestos e paravam onde ele
indicava que já estava bom, depois não mais se moviam. Impressionante, hoje
isso é impossível; (4) não havia cera de nenhum dos jogadores, levavam um
sarrafo, mas já se levantavam, a bola rolava o tempo todo; (5) o aproveitamento
do rei foi de 100 %, muito marcado, quase não tocou na bola, porém participou
diretamente de 3 dos 4 gols do time: em um deles marcou e nos outros dois fez a
assistência, o passe final. Os resumos dão a impressão de que Pelé levou o
time. Não foi bem assim, mas é maravilhoso ver quando um craque tem consciência
de suas capacidades e sente e se coloca no lugar certo para decidir um jogo.
Jordan, no basquete, fazia isso, esse outro Pelé. Quem levou o time, em termos
de visão de conjunto, em minha humilde opinião, foi o Gerson; (6) Rivelino
deitou e rolou (no segundo tempo), seus dribles tiraram os italianos do sério.
Chutou umas três bolas lá na arquibancada superior. Sabia dar chutão sem
direção, acontece que não é mole pegar de trivela; (7) Gerson fez o gol mais
bonito do jogo. Dois toques rápidos desguiando dos marcadores e uma porrada na
bola. A bola entrou rasante no canto esquerdo do gol, o goleiro beijou o
gramado. Já era.
Outras considerações sobre a final de
setenta. Sobre o cansaço da equipe italiana: vi um depoimento do Gerson dizendo
que a Itália estava cansada em função dos jogos anteriores e que sabia que o
time não iria ter gás no segundo tempo, não deu outra. O segundo gol do Brasil
afetou o ânimo dos italianos, e o brasileiros pressionaram muito. A Itália
ficou nervosa. Daí, deu pra bola.
Sobre não ter mencionado o desempenho do
Furacão Jairzinho e outros. Pois é, eu escrevi mais acima que minha enumeração
era incompleta e, portanto, injusta com outros jogadores. É que meu interesse
foi o jogo da final. Sim, Jairzinho jogou bem e inclusive marcou um gol, meio
que sem querer. Mas vamos lá, Tostão jogou um bolão, Clodoaldo frio e elegante,
Félix, com aquele porte magrinho e quase raquítico, fez a melhor defesa do jogo
nos primeiros minutos, salvou o Brasil de sair perdendo. Uma virada seria
lindo.
Sobre o gol mais bonito da partida.
Defendo o gol do Gerson porque reúne rapidez na leitura da jogada e o sentido
da precisão; Gerson corrigiu um lance em que o Jairzinho foi barrado pela
defesa italiana: a bola respinga para o Canhota, ele busca o espaço paro chute
com dois toques curtos, curtos o suficiente para entortar os zagueiros e fim de
papo. Foi para abraço. O gol do Carlos Alberto, concordo, é uma pintura. É todo
em câmera lenta, Pelé parece levar uma eternidade para ajeitar o corpo e dar
aquele toque lindo para o chute do capitão que é uma bomba aguda e que faz o
tempo voltar a correr do jeito de sempre. Um gol tão calculado e demorado – demora
de que carece o gol veloz do Gerson – que parece ter sido combinado com o adversário.
Uma derradeira questão sobre a final da
copa de 1970 que diz respeito à compleição física dos jogadores. Revendo a partida
dá para notar que, no geral, todos eles (considerando, por contraste, as
condições da preparação física de nossos dias) todos eles aparentam ter corpos
de pessoas normais. Parece que saíram do banco, da repartição pública ou da
fábrica e foram jogar bola. O Gerson, por exemplo, tem cara e calvície de
farmacêutico. Por outro lado, os jogadores negros, quase todos, já apresentam
corpos mais estruturados, no entanto, essa percepção não me deixa mais alegre,
no sentido em que seria um fato de que nós negros devêssemos nos gabar; não se
trata disso. A constatação talvez indique que o cotidiano (a realidade) dos
jogadores negros tenha exigido ou tolerado deles apenas as capacidades e os
desempenhos ligados à força e à explosão físicas. O peso do racismo nos ombros,
nos músculos negros. Um condicionamento físico reativo.
*
Não posso acolher quem se diz
arrependido de ter votado no Bolsonaro. Não é justo propor que se organize uma
comissão de pessoas ponderadas cuja missão seria dirigir-se até a casa de, por
exemplo, Lya Luft e oferecer-lhe o ombro amigo nessa hora em que manifesta um
teatral arrependimento. A romancista afirmou que não esperava que o governo do
seu candidato se transformasse numa "ditadura branca".
É injusto com quem, desde sempre, está
lutando (e dando a cara a tapa) contra esse governo protofascista, sentir
peninha dos arrependidos e retardatários que agora são objeto de críticas e
insultos – plenamente justificados, aliás – da parte de quem conseguiu
vislumbrar o que significaria votar em tal projeto obscurantista.
A questão não é que esses arrependidos
tenham apenas votado num candidato e agora, diante de certos fatos, comecem a
rever o que fizeram, afinal, quem não se engana? E coisa e tal. Mas me diga uma
coisa, o que há por detrás desse "eu apenas votei errado e quero outra
chance"?
Respondo. Os arrependidos de ocasião
sabiam que à época votavam em um racista e não deram a mínima; os arrependidos
sabiam que votavam em um machista renhido e não deram a mínima; os arrependidos
sabiam que votavam em um sujeito que defendia a tortura e o estupro e não deram
a mínima; os arrependidos sabiam que votavam em um homofóbico e não deram a
mínima; os arrependidos sabiam que votavam em um político que passou quase 30
anos de sua vida pública na Câmara dos Deputados sem propor nada de relevante e
não deram a mínima; os arrependidos sabiam que votavam em um sujeito que
defendia o golpe de 64 e não deram a mínima.
Esses arrependidos de ocasião são baita
problema. Só que não são um problema que me diga respeito. Eles sabem que arrependimento
não mata ninguém. Vocês querem dormir com os inimigos? Então os acolham e façam
bom proveito.
[1]
Ronald Augusto é poeta, letrista
e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente
no blog
www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/
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