Pular para o conteúdo principal

A perpetuação do racismo implícito que ofende sem ofender

 


A perpetuação do racismo implícito que ofende sem ofender

Ronald Augusto[1]

 

O verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” serve à maravilha às formas ambíguas das práticas racistas, pois ao contrário do racismo às claras ou explícito, esse verso ofende sem ofender. Se é verdade que povos escravizados não são necessariamente destituídos de virtude ou bravura (e podemos concordar nesse ponto), então mais indefensável se apresenta o significado da passagem do hino gaúcho. A condição de escravizado, ou de um povo sujeitado à força, é complexa e não se pode afirmar que essa condição indica um grupo sem valor, sem capacidade de reação.

Recentemente assisti a uma entrevista do pensador Silvio Almeida onde a certa altura um dos interlocutores (um jornalista negro) comentava que de acordo com sua lembrança os pais infelizmente nunca lhe falaram com franqueza a respeito do racismo, o assunto parecia ser negado ou empurrado para debaixo do tapete. O jornalista entendeu que essa situação acabou retardando seu devir de negro consciente. Silvio Almeida fez uma abordagem muito interessante a respeito do depoimento. Aqui vai um resumo: qualquer negro que está vivo hoje, que alcançou uma formação superior e conquistou alguma estima social etc, deve considerar com muita atenção e respeito as estratégias e os custos de sobrevivência dos nossos antepassados, dos nossos pais, o que eles precisaram enfrentar para se manter vivos e produtivos a ponto de servirem de suporte para as nossas realizações e lutas no presente. Essa evocação à entrevista de Silvio Almeida ainda serve para contraditar o sentido do verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.

Por outro lado, é preciso considerar as circunstâncias em que o hino foi composto. O que cantam os versos e a colaboração do contexto para a estabilização de alguns dos seus significados. Em primeiro lugar, o hino dos farrapos e, de resto, qualquer hino, cumpre uma função ufanista, exortativa, isto é, visa a elevar o moral dos seguidores em vista de um objetivo. Acontece que quem carrega a bandeira da revolução ou da luta anti-imperial é a elite do tempo, os estancieiros. O hino idealiza uma revolta cheia de honra e bravura que não tem nada de popular, aliás, o episódio dos Porongos, a traição aos negros que emprestaram sua coragem e esperança (último recurso em vista da liberdade) a uma revolução que não era a sua, confirma o caráter elitista de toda essa história infame. O verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” informa o essencial a respeito de tal elite, ou seja, o desprezo por aqueles que circunstancialmente são (seus) subalternos. O hino quer excitar a bravura dessa elite branca defendendo mais ou menos o seguinte: vocês são homens ou não? Ou vocês são honrados e virtuosos ou vocês são escravos. Quem não se comprometesse com a luta ou com a revolução se pareceria com a gente escrava. O hino se referia também ao contexto imediato, se não lançasse mão desse jogo erístico-retórico (convencer tendo ou não razão), seu poder de mobilização dos iguais talvez se perdera. Num contexto histórico em que a escravidão negra perdura até 1888, soa demasiadamente fleumático encarecer um sentido atemporal e abstrato ao verso farrapo – segundo esse ponto de vista o termo “escravo” não faria menção apenas ao negro, faria alusão a simbologias menos lastreadas no documental. Entretanto, o receptor ideal do hino, a elite dos estancieiros brancos, decodifica a mensagem em função de tal contexto. Sou um homem ou um escravo preto? Acho difícil aceitar que por detrás da palavra “escravo” o receptor ideal identificasse um sujeito branco ou algo de cunho mais conceitual. Em nossos dias a leitura ou a interpretação inercial do verso parece ser a mesma. A eficiência do racismo implícito é inegável.

Em segundo lugar, a perpetuação do hino, a naturalidade com que ele é cantado sem que nada se diga a respeito do verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, já que, como dissemos antes, é possível um povo ser bravo e valoroso mesmo tendo experimentado um revés desse tipo (as estratégias de sobrevivência...), essa perpetuação do preconceito e do racismo que ofendem sem ofender, reforça o imaginário elitista (espécie de ar viciado que compartilhamos, uns mais outros menos) de que pobres e pretos estão na condição em que estão porque não se mexem, porque não “fazem acontecer”. O verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” é produto da cultura do privilégio branco, portanto é elitista e racista. Feito qualquer máxima, seja poética, seja moral, oriunda do pensamento da brancocracia, a ideia embutida no verso parece ser auto-evidente e necessária e de validade universal. Só que não.



[1] Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) À Ipásia que o espera (2016), O leitor desobediente (2020) e Tornaviagem (2020). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dá licença, meu branco!

Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerância ad eternum , e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem dest

E mais não digo : apresentação

  De tirar o fôlego Guto Leite * Olha! Difícil dizer que o leitor acabou de ler o melhor livro do Ronald Augusto... Até porque se trata de poeta excelente, que vai com firmeza do assombro lírico de À Ipásia que o espera à organização sofisticadamente profunda de Entre uma praia e outra , e crítico atento e agudo, de coerência invejável em matéria variada, para citar Crítica parcial (isso para falar só em livros dos últimos anos). Ok, se não posso dizer que é o melhor livro do Ronald, afirmo com tranquilidade que temos uma espécie de livro de síntese de uma trajetória, de uma posição, de uma acumulação, de um espírito, que faz eco, por exemplo, a obras como Itinerário de Pasárgada , com textos canônicos de Bandeira, ou Sem trama e sem final , coletânea mais recente de Tchekhov, colhidas de sua correspondência pessoal. Com o perdão da desmedida, o livro do Ronald é mais inusitado do que esses, visto que a maior parte dos textos vem do calor da hora do debate das red

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb