Sopapo, um heterônimo
do poeta-cancionista Richard Serraria
Ronald Augusto[1]
Não é exagero
considerar que T. S. Eliot, com a publicação do poema The waste land, em 1921,
inaugurou uma espécie particular de tradição no que diz respeito à economia dos
significados que, por exemplo, os dispositivos paratextuais podem ofertar à
fruição e à imaginação do leitor diante de um conjunto de poemas. Toda a série
de mensagens que acompanham e ajudam a explicar determinado texto – sobrecapa,
títulos, subtítulos, introdução, notas de rodapé, e assim por diante –, se
constituem em formas de paratexto.
Essas notas ou comentários
adjacentes ao poema indicam tanto promessas de sentidos a serem conquistados
como, em certa medida, servem para instaurar uma contenção ao apetite
interpretativo do leitor, isto é, para além das margens desse círculo de giz, a
validade de algumas leituras pode ser objeto de suspeição. As anotações ao pé
do poema, redigidas pelo próprio autor, às vezes nos advertem de que não se
pode dizer qualquer coisa a seu respeito. O roteiro de referências ideado por
Eliot ao seu gesto poético tem pavimentado, há décadas, o trabalho de leitura
dos exegetas e também do leitor comum.
Sopaporiki, de
Richard Serraria, incorpora à sua estrutura algo da vocação eliotiana
relativamente ao livro de poemas concebido como a atualização de um conceito ou
da circunstância histórica relativa às ideias do poeta. Esse engaste conceitual
nos flancos do poema se traduz em presença multifacetada de paratextos que
Serraria atrai para o centro do processo de criação com vistas a torná-lo mais
propício a outras interações semióticas e epistemológicas.
Assim, a obra contém um
mini-catálogo de nomes de fraternos ancestralizados, artistas, intelectuais,
sacerdotes da religiosidade de matriz africana, ativistas, enfim, referências e
reverências a pessoas cujas leituras tornaram possível a existência do livro;
em seguida há um prefácio préáfrico
da escritora Eliana Mara Chiossi; e, além disso, os poemas ainda são
antecedidos pelo texto paródico “Machado de Shángô – toques iniciais do tambor”
em que se descortina aos olhos do leitor as intenções ou o repertório simbólico
e imagético-vivencial do verdadeiro autor da obra, a saber, o Sopapo. Richard
Serraria criou o seu heterônimo, o Sopapo, esse ser batuqueiro resgatado ao
presente pelas mãos do músico Giba-Giba. E esse heterônimo não faz poesia
livresca, mas, sim, tamboralitura:
transe poético-performativo que retroage à velha-guarda vanguardeira das
orações de orixás, os orikis em feitio
de transcriação, para repercutir e aflorar, mais adiante, em rosácea
intertextual nos conceitos-compósitos Améfrica
e pretuguês cunhados pela filósofa
negra Lélia Gonzalez. Por fim, todo esse sistema de citações, mobilizado em Sopaporiki, é cuidadosamente enfeixado
em forma de glossário amefricano de
maneira a dissolver dúvidas e explicar passagens que talvez pareçam obscuras ou
difíceis ao leitor não iniciado em seu corpo a corpo com o baticum dos poemas.
Por essas e outras razões é
que o que está em causa em Sopaporiki
não é apenas a consecução de versos bem logrados, nem o pacto com a noção retrô
da “qualidade poética” decorrente da obediência às escolas e às escalas do
cânone ocidental – tábuas de salvação de muito poeta convencional. A
experiência de linguagem presentificada por Serraria (ou por seu heterônimo) em
Sopaporiki – que abole conjunções,
maiúsculas, conectivos lógicos na perspectiva de transliterar o pretuguês,
verdadeiro idioma poético –, não se apoia na estabilidade do signo verbal em
sentido próprio ou convencional. É mais o signo verbal em pauta proliferante,
como ícone, como design de formas
sonoras, como palavra voando, pois, como a prática o demonstra, versos bons nos
impelem à leitura em voz alta. O conceito de poesia investigado aqui não concorda
com a máxima de Mallarmé segundo a qual tudo acaba em um livro (tout aboutit en un livre), porque, ainda
que o magma de linguagem, a panglossia em “língua-chão” do Sopapo cancionista se
encontre entre as capas de um volume, o que se dá a ouvir, da primeira à última
página, é um tuque-tuque de ritmos oraculares, de corpos vocalizados, estilhaços
canoros de falas em um recorrente (riocorrente)
acabar-começar. Os orixás urram para todo sampler.
[1]
Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e
mestrando em Letras na mesma instituição. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha
(1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida
(2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), À Ipásia que o espera (2016), Tornaviagem (2020) e O leitor desobediente (2020). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de
notícias Sul21: http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ronald-augusto/
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