Experimentos corpo um, 2008 de Marcelo Gobatto
Miasmas de Munir Klamt e Laura Cattani
Se hoje aceitamos sem muita resistência a figura do escritor-crítico ou do poeta-crítico, nada mais natural que o artista-crítico - não obstante representar as linguagens não-verbais - seja convidado a participar do debate. E quando penso num artista que aciona com coragem e liberdade essa atividade de mão dupla, o primeiro nome que me vem à mente é o de Dione Veiga Vieira. Já há algum tempo Dione conquistou, não sem a força contrária dos representantes locais da inveja e da mediocridade, um espaço importante para a sua arte na produção contemporânea brasileira. Basta olhar para o seu histórico de exposições individuais e coletivas para que se possa aquilatar a seriedade e, talvez o mais significativo, a independência do seu percurso criativo.
Dione, portanto, poderia muito bem “apenas” exercer o ofício da sua arte, e naturalmente isso não seria pouco. Mas ela se propôs, além disso, a enfrentar um problema estimulante: a poeta e artista visual Dione Veiga Vieira, resolveu abrir um espaço generoso no seu ego fictor para a faceta possível da crítica interessada. É assim que Dione, através das análises e percepções críticas direcionadas à produção dos seus pares, que já há algum tempo vem publicando em http://www.revisadoseoutros.blogspot.com/, nos desvela e irriga o gesto requintado da porção artista-crítica de sua personalidade. Mas, a mescla de artista e crítico cedo ou tarde ultrapassa o âmbito meramente teórico e alcança a intervenção cultural prática. É o caso, por exemplo, da recente curadoria para a coletiva Casa/corpo que Dione Veiga Vieira propôs ao pensamento e à sensibilidade da comunidade de apreciadores e fazedores de arte. Um convite à interlocução viva, independente das preferências e dos grupelhos instituídos pelo provincianismo.
Em Casa/corpo, além do próprio trabalho de Dione, também foram expostos os de Klinger Carvalho, Marcelo Gobatto, Luciano Zanette e Gabriela Pícoli, Munir Klamt e Laura Cattani, ambos do Grupo Ío. Digamos que o tema da mostra seja esse, mesmo, as interações possíveis e metafóricas entre corpo e casa estabelecidas a partir de uma ampla imagética, que envolve categorias estéticas (concernentes à expressão contemporânea), metafísicas, sensoriais e pulsionais. Mas, algumas acepções relativas ao corpo, tais como “receptáculo”, “continente”, “molde”, enfim, o corpo como “a morada do ser”, não são encarecidas, ao menos até onde pude perceber, pelos artistas. Mais do que recipiente, coisa animada pelo inefável, as imagens ou os indícios da passagem do corpo (pelo mundo e pelo espaço arquitetônico da exposição) trabalhados nas obras, remetem à condição de um corpo emitente. Isto é, o corpo enquanto imagem-síntese se fragmenta em traços simbólicos desencadeadores de leituras controversas.
Deparamos, assim, uma energia centrífuga a inundar de senhas e sentidos os quatro cantos do espaço expositivo. Não se trata, na curadoria pensada por Dione Veiga Vieira, de um “corpo que cai”, passivo, inercial, mas de um corpo que fala, por meio de múltiplas linguagens. Um livro corpóreo, tátil e mudo, que se abre e se oferece numa crueldade às vezes indagadora, às vezes risonha. Os corpos e sua espessura sígnica estão e não estão ali; acotovelam-se disputando espaço com os visitantes da coletiva. Penso em Manuel Bandeira: os corpos se entendem em sua aparente intransigência, mas as almas não. Rememoro algumas cenas-obras e as interpretações parciais a respeito delas que me assaltaram durante essa visita.
Miasmas de Munir Klamt e Laura Cattani: o leito resumido à sua estrutura sem carne; a cama flutua no ponto cardeal da exposição. Imagem do sono onde o corpo como que se vaporiza. Alusões ao sonho, ou bem ao pesadelo, pois sobre a cama de ferro (metáfora do espesso entressonho que toma o visitante-espectador?), espécie de esqueleto de uma máquina inconclusa e à deriva, sobram segmentos de espuma-esponja num arranjo que confere ao material um movimento encapelado de ondas-colchões. A turbulência estática do corpo virtual no vazio sem peso e sem fundo de um sono sombrio.
Variações em vermelho - o viajante percorre territórios incógnitos de Klinger Carvalho: mausoléu, jazigo de Exu-Bará; despacho e monumento a Hermes, a divindade grega equivalente ao orixá que preside as zonas de fronteira e as encruzilhadas. Objetos rubros empilhados como que a espera de um traslado. Por isso, convoco Exu e Hermes, entidades do trânsito, da troca, das transações semióticas. Um gradeado pontiagudo interditando a visitação de outros corpos de passagem pelas imediações. O contato só visual; textura intocável do madeirame. Materialidade vermelha na consecução de uma fantasia objetal. Holocausto à vermelhidão, ao apetite dos espíritos, já que, apenas eles podem atravessar o cercado lanceado para beber, na superfície dos objetos, o sangue resolvido numa mise-en-scène congenial à cenografia da tragédia.
Experimentos corpo um, 2008 de Marcelo Gobatto: o aproveitamento do detalhe arquitetônico da sala onde portais ou pórticos ganham relevo nas paredes e se multiplicam a espaços regulares. No espaço sacrossanto (a brancura rígida prestes a receber o inscrição-pichação) de um desses portais, Gobatto escreve ou rasura a carvão a sua página visual “demoníaca”, escritura do tamanho e da envergadura do corpo, palavra física, que se apaga pelo acúmulo, pela redundância babélica do letrismo gesticulatório e jaculatório. Sentidos que subsumem na pele desse palimpsesto que sai do ar livre das ruas e vem parar, agora embalsamado e um pouco a contragosto, no espaço fechado da galeria. Ao pé dessa parede da épica urbana e sem enredo, o ruído sonoro-visível de um monitor de vídeo de costas para o visitante e de frente para um espelho. Fracasso da comunicação: na totalidade o ilegível da e na parede. Narciso ensimesmado: o cristal da tela do monitor contra um espelho posicionado de modo a não representar o mundo circundante, mas apenas o minimalismo e o descontato de uma pré-imagem entrópica.
E, por fim, Ante-sala e sala de recepção de Dione Veiga Vieira: a artista demarca um espaço sacrificial para o corpóreo; o elogio erótico e necrópsico da carne. No entanto, resta um ar espiritual aos instrumentos que promovem o desmanche do corpo animal. Um mundo invisível na escureza dos objetos em negro, iluminados parcialmente pelo prateado das peças metálicas: ganchos, afiador, talheres, etc. O onirismo planificado do não-boi encarnado na metonímia de uma par de chifres imensos, priápicos, que fazem, por sua vez, o contraponto com as meias femininas, preenchidas com pequenas peças de vidro: pornografemas, desejo em secções. O não-boi: a mesa em brilhante pelagem negra, macia; o assentamento matemático e surreal de coisa quadrúpede. O conjunto projetado por Dione alude a salas perversas que em sua árdua beleza e em sua precisão à maneira bauhaus, parecem aguardar o peso, a gravidade de corpos em postas, em pêndulos, dependuradas em meias, em pequenos ganchos argênteos, prosaicos e delicados, não obstante o torturante a que fazem alusão. Paixão ou mortificação dos significados. Mas, por outro lado, esses ganchos também estão ali como que à espera de sentidos, significações. Neles o fruidor (agora, essa palavra beira a condição de compósito verbal e suporta uma acepção quase intolerável) poderá dependurar, se assim o desejar, sua vontade de interpretação. A ausência da coisa demanda uma enfiada de nomes possíveis que lutam entre si na tentativa de substituí-la.
Casa/corpo: “o corpo no de um outro”. Ambiente de alheamento e de extravio através de linguagens que nos transportam deste mundo para um outro menos normatizado, mais intratável. Leitura-percurso por angulações interiores cuja eventual recusa por parte do espectador estabelece um déficit no desdobrar crítico da inteligência. Reminiscências do não-havido a partir de restos ou índices prováveis de “estados de corpo”.
Comentários
abração
Cândido.