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uma assinatura monumental



Incluída entre as melhores obras arquitetônicas de 2008 por cinco especialistas — os críticos Luis Fernández-Galiano, Frederick Cooper, William J. R. Curtis, Albert Ferre e Juan Miguel Hernández Leon —, a nova sede da Fundação Iberê Camargo, projeto do arquiteto português Álvaro Siza, é a primeira edificação construída em Porto Alegre para este fim, isto porque as instituições até então existentes, como, por exemplo, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), ocupam prédios históricos criados originalmente visando outros objetivos.

Entre as demais obras arquitetônicas selecionadas figuram muitos edifícios destinados a apresentações e acontecimentos públicos de cunho artístico-cultural e também esportivo, é o caso, para citar um exemplo, do Estádio Olímpico de Pequim, o “Ninho de Pássaro”, como desde então se tornou conhecido. Por outro lado, a lista dos eruditos também contempla obras voltadas para as questões tradicionais de habitação e de modelos urbanos que comportem inovações, porém sem deprimir formas e valores eficientes do passado. Dentro desta vertente, o projeto do “Complexo MTN” em Orestad, Copenhague, figura na lista, pois responde às necessidades de um novo crescimento urbano e desenha zonas residenciais de baixa densidade: as casas combinam o melhor da moradia periférica e suburbana com a vida na metrópole (serviços, mestiçagem de usos e costumes, etc.).

Com a inauguração do Museu Iberê Camargo, e, agora, com sua inclusão entre os melhores edifícios de 2008, a jactância jeca do provincianamente tolerável já comemora manifestando seu ânimo nestes termos: “O novo museu, faz a capital gaúcha despontar como um pólo cultural do país”; e “transforma a cidade em referência nacional — e internacional — no campo das artes, da museologia e da arquitetura” (rápidos recortes de matérias do jornalismo cultural que, não faz muito, líamos aqui e ali). Num prodigioso virar de páginas, a modesta história cultural de Porto Alegre passa a ser dividida em antes e depois do museu projetado pelo arquiteto português. Com efeito, o edifício, concebido como o seu próprio nome indica, para — através da melhor tecnologia de preservação e exposição — abrigar o legado artístico do pintor Iberê Camargo e exposições temporárias de arte moderna e contemporânea, é uma grande obra de arte. E, embora eu compreenda e quase me associe às manifestações de entusiasmo suscitadas pelo acontecimento, não posso deixar de comentar algumas coisas que talvez interessem a um outro tipo de discussão — por ventura mais impertinente — acerca de questões correlatas ao assunto que serve de ponto de partida a este artigo. Mas, antes de entrar nestes pontos, gostaria de avançar algumas palavras no sentido de investigar se a intervenção artística de Álvaro Siza ratifica ou retifica, de algum modo, a situação espiritual pública em que se encontra a arte contemporânea e o seu capítulo arquitetônico. Dilemas de uma beleza político-mercadológica que é expressão da astúcia de intermediários da arte.

O arquiteto Álvaro Siza Vieira nasceu em 1933, na cidade de Matosinhos, em Portugal. Estudou na Escola de Arquitetura da Universidade do Porto, onde depois passou a lecionar. No início de sua carreira, colaborou com o arquiteto Fernando Távora. O texto de apresentação de Siza, cuja íntegra se encontra no site da Fundação Iberê Camargo, diz que o artista desde cedo “se empenhou em um projeto coletivo do período: não ser tradicionalista e não ignorar suas raízes”. Ainda segundo o redator da apresentação “o trabalho de Siza não admite rótulos”. Muito bem, se dermos crédito a esse esboço de personalidade artística, não há como deixar o arquiteto do lado de fora das concepções pós-modernas no que respeita à arte. Inclusive porque o ano de seu nascimento o situa (quem sabe à sua revelia), a partir de um corte geracional, dentro dos limites do pós-moderno. Alguém já cunhou a expressão “ecletismo retrô” para tentar representar o estado de espírito deste período. Álvaro Siza não é tradicional, mas também não recusa suas raízes; ele dá de ombros e as etiquetas esvoaçam caindo sobre o pavimento das ruas.

Identificando-o a princípio como um pós-moderno, não o faço com o intento de censurá-lo ou de coisa parecida. O modernismo (sua Beatriz é a vanguarda) se tornou tão oficial que a sua reação, isto é, o pós-modernismo, resta sempre em nosso imaginário como uma anedota conservadora. O arquiteto italiano Paolo Portoghesi questiona a equação redutora representativa do ideal moderno: “desenvolvimento = progresso”. Nas polêmicas em que se envolveu era tachado de pós-moderno e de retrógrado; para os seus opositores os termos coincidiam. Portoghesi vê no pós-modernismo a possibilidade de restaurar o diálogo com o passado, algo que havia sido descartado com o advento das vanguardas do início do século 20 e que, de resto, estava pressuposto no projeto modernista de construir “a partir do zero”. Uma negatividade radical. O que aconteceu a seguir fica bem contextualizado com um pensamento da filósofa Hannah Arendt: “o substituto ainda tem alguma coisa a ver com aquilo que vai substituir”. Não obstante as controvérsias entre um lado e outro, o pós-moderno é legatário do maior valor do projeto moderno, a saber, a liberdade. Mas, as artes — e o que aqui nos interessa: a arquitetura —, no uso, por assim dizer, extravagante deste legado, transformaram-no em vulgaridade. O interesse pela tradição renovada foi ficando pelo caminho em favor do virtuosismo técnico e da mania da citação.

Em outros termos, a auto-referencialidade da arquitetura e das artes contemporâneas alcançou uma condição de tamanha presunção que, às vezes, alguns dos seus produtos parecem prescindir do fruidor e do morador/habitante. O que outrora, no auge do modernismo, era prerrogativa apenas dos pintores, dos escultores, etc., isto é, travar uma relação negativa ou crítica com a sociedade, negando inclusive qualquer interlocução com um público em formação, hoje, mesmo entre os arquitetos, observa-se uma precipitação para abandonar as relações com clientes privados, como era a tradição, e a voltar-se para grandes obras do Estado ou para concursos e prêmios de mostras internacionais ou, principalmente, emprestar seus serviços (seu gênio) às grandes corporações empresariais. Isto representa uma reviravolta, porquanto os arquitetos historicamente trabalham (ou trabalhavam) a partir de solicitações concretas, e precisam (precisavam) estabelecer alguma forma de vínculo com a sociedade, vale dizer, propondo respostas aos problemas das cidades. Antes, os arquitetos utópicos achavam que podiam indicar às pessoas o modo como elas deviam viver. Agora, muitos deles, retomando a arrogância moderna, as incorporam, mas a contragosto, em sua arquitetura da desconstrução e do choque, que à semelhança do politician do poema de e. e. cummings “is an arse upon/ which everyone has sat except a man”. Ou em português: “é um cu no/ qual tudo se sentou exceto o humano” — a tradução é de Augusto de Campos, minha colaboração se restringe apenas à troca do vocábulo “ânus” pelo tabuísmo que aparece grifado. Muito bem, o que acontece é que ninguém quer admitir algo simples: arquitetura não é bem arte. Um mal-estar equivalente surge sempre quando afirmo que letra de música não é bem poesia. Acho excessivo explicar, mas vá lá: não deprecio uma e tampouco exalto outra. Trata-se tão-só de admitir que são linguagens diferentes. Está bem, com alguma consangüinidade, mas cada qual com a sua específica mise-en-scène. Distintas semióticas. E há um valor de suma importância no jogo de disjunções e conjunções entre essas linguagens que não pode ser desconsiderado, sob pena de enveredarmos para um comportamento muito emocionado e pouco crítico numa situação onde a análise pede passagem. Refiro-me ao caráter utilitário da arquitetura, que por sua vez, quando se trata de uma obra artística é um dado que pode ser perfeitamente desconsiderado. Tem um peso mínimo ou quase zero na economia construtiva do objeto artístico.

A figura do arquiteto-artesão, aquele que produzia para um cliente, cede lugar à personalidade cada vez mais prestigiada e prestigiosa do arquiteto-artista, do arquiteto-performer, cuja expertise, agora, parece que só pode ser exercida dentro dos limites da mais estrita autonomia artístico-corporativa. Suas obras são de valor inquestionável, de consumada qualidade estética, e em certo sentido, desbordam do âmbito da arquitetura, haja vista que buscam intencionalmente uma espécie de alheamento em relação aos problemas e singularidades da cidade. O que não é o caso — voltando ao que nos interessa — de Álvaro Siza, um arquiteto que do ponto de vista da sua área de atuação lê os dilemas do moderno e do pós-moderno de um modo conciliador e não menos crítico. Siza é sensível ao desenho. Suas formas não são superficiais. Como destacaram os eruditos juízes, seu projeto (premiado com o Leão de Ouro na 8a Bienal de Arquitetura de Veneza) para o Museu Iberê Camargo se caracteriza pela “força poética e o mistério”. Não sei muito a respeito do processo de trabalho de Álvaro Siza, mas pelo que pude observar não só por meio das visitas ao Museu, mas também procurando por imagens de outras construções suas na internet, notei em sua arquitetura um desejo de leveza solar e uma desconfiança com respeito ao espetacular. Uma obra em cuja resolução não sobram os vestígios dos andaimes da técnica.

Tal como ocorre em diversas esferas do trabalho, do conhecimento e da criação, a arquitetura contemporânea também faz uso pesado da tecnologia digital. Os recursos computacionais, de simples ferramentas para a otimização e a realização de projetos arquitetônicos, de uma hora para a outra passaram para o andar de cima: foram investidos de um poder quase criativo graças à sua capacidade de manipulação e deformação de modelos clássicos, plasmados virtualmente por meio da distorção. O Museu Guggenheim, em Bilbao, do arquiteto-artista Frank O. Gehry, é paradigmático a este propósito, e divide opiniões. Para uns quantos, a deformação violenta das formas é usada por Gehry de maneira original e se baseia numa estética da destruição, da desconstrução do cânone. De outra parte, severas críticas argumentam que seu olhar arquitetônico glamouriza e dá suporte à ortodoxia pós-moderna que tanto nas artes quanto na arquitetura produz fantasias objetuais, instalações, construções e cidades que não são senão simulacros cuja kitschização se nutre de um grande apelo visual e comercial. Para alcançar esses resultados espetaculares, quantias desmedidas de recursos financeiros (muitos deles originários dos cofres públicos) são investidas em performances artísticas e edifícios que, ao fim e ao cabo, não duram nada. A obra de Gehry, o museu de Bilbao (inaugurado em 1997) entrou em processo de restauração em 2001 e prossegue até os dias de hoje.

O Museu Iberê Camargo guarda algumas semelhanças com o Guggenheim, mas não com este de Bilbao, e sim com o Guggenheim museum de Nova York. Álvaro Siza não se põe à parte das questões arquitetônicas do seu tempo. Na superfície, as duas obras se equivalem: a utilização do cimento branco (que muda de aparência com o passar do tempo); a combinação — mais acentuada na obra de Siza — de curvas moles e oleosas com dobras, arestas e cortes afiados, angulosos, presentes na linha das rampas internas e externas. Estas se projetam sobre o aspecto externo do prédio, a um só tempo, coladas e descoladas de sua fachada. Pelo lado de dentro o visitante pode se deslocar de um andar para o outro evitando, se assim o quiser, o elevador e a escada, fazendo esse percurso através das rampas-corredores. Estes acessos cumprem também uma função de descompressão, de pausa, de vazio, enfim, se configuram num contraponto ao impacto grandioso da “lama estelar” (metáfora empregada por Ferreira Gullar) da imaginação pictórica de Iberê Camargo.

Descendo/subindo pelo delicado plano inclinado desses corredores que são rampas, em dois ou três pontos isolados, Álvaro Siza recortou no cimento umas aberturas envidraçadas através das quais o visitante divisa, aqui, uma nesga de céu, e, ali, um fragmento lacustre da paisagem porto-alegrense. São duas ou três estreitas escotilhas de escape. Parece pouco para uma pausa satisfatória diante da eloqüência, da retórica compacta dessa pintura inventada por Iberê Camargo, às vezes algo jaculatória e gesticulatória em sua expressividade. Mas Siza não quer que o visitante desperdice a sua atenção: os corredores são lances de pensamento. É como aquele momento em que de repente o leitor levanta a fronte das páginas do livro, não para recusar o que acaba de ler, mas, pelo contrário, para tentar concentrar, capturar, expropriar para si a lógica sensível contida naquele passo do texto que, de pronto, já se tornou parte integrante da intimidade dos seus biografemas. Em entrevista, Álvaro Siza argumenta assim sobre como, no seu entender, deve ser a relação da obra do artista com o espaço que a abriga: “Há uma tendência que propõe o apagamento do espaço, quase que uma exigência de ausência da arquitetura. Outra entende que a relação entre a pintura e o espaço pode trazer um entendimento ainda maior sobre a obra do artista. Eu não gosto de um espaço absolutamente neutro. Acho que, no diálogo com o espaço, a obra parece mais viva”.

O diálogo de Álvaro Siza com Iberê Camargo chega, assim, a um alto nível de realização. O Museu enquanto obra acabada, aberta a visitação pública, cumpriu exigências de padrões internacionais de iluminação (parece que uma luz “solar” atravessa o teto de cada andar, teto formado por placas de vidro semitransparente gerando uma nitidez confortável, porém levemente enublada), controle de temperatura (para a conservação adequada do acervo do pintor), abastecimento de água, tratamento de esgoto e prevenção de incêndios, etc.

Para concluir, oferto à imaginação crítica mais do visitante do que do leitor distante (este poderá se socorrer de alguma reprodução do Museu) minha leitura focada num detalhe do edifício de Siza. Não consigo deixar de ver, grafada na fachada da nova sede da Fundação Iberê Camargo, a assinatura, o grafito monumental do arquiteto português. Imensa imagem tipográfica num salto escultórico, estatuário. Isto é, metonimizada no ziguezaguear das rampas externas está lá, para quem quiser ver/ler, está lá na gestualidade da linha, o desenho estrutural, o movimento básico que nos permite escrever ou caligrafar as consoantes “s” e “z”: letras antípodas na forma e no som, e que dão o assentamento contrastante ao segundo nome do artista e arquiteto português: Álvaro SiZa.






Comentários

Juliana Meira disse…
gosto do texto, tua perspectiva tem tudo a ver (literalmente).
abraço, Ronald


ps. grata por incluir o "tempoema" em teu espaço

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