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uma vírgula irritante



Em vida, Anotações à margem (1994) foi o último livro individual que Oliveira Silveira viu publicado e incorporado ao conjunto de sua obra [1]. É impressionante que seu recente desaparecimento feche um ciclo de quinze anos sem que mais nenhum livro seu apenas viesse à luz. E isto é de espantar, ainda mais se levarmos em consideração, por um lado, a qualidade de sua produção poética — referida e solicitada mais além do que aqui — e, por outro, a facilidade e a regularidade com que poetas e prosadores ruins publicam suas obras sem que quaisquer obstáculos lhes sejam ofertados. Suspeito que, hoje, qualquer um consegue reunir num arco de tempo parecido, no mínimo uns sete ou oito títulos (mas, se tudo correr bem, ninguém os guardará na memória).

Registre-se que embora Oliveira não possa ser relacionado como um poeta de inspiração caudalosa, tampouco era um sujeito que se vangloriasse ou abusasse da esterilidade. Era um artista em movimento. Não raro, em nossos encontros, relatava a existência de poemas em progresso na fermentação da gaveta; mesmo aqueles já publicados estavam sujeitos a expurgos e revisões. Em alguns exemplares dos seus primeiros livros (todos eles tipográficos, exceto por este que agora é objeto de análise) tive a chance de conferir em diversos poemas correções, supressões e acréscimos visando a futuras re-edições.

Pode-se dizer que Anotações à margem é um livro pensado sob o signo da reescritura e da reconsideração a um tempo caprichosa e à vontade das perspectivas estéticas com que se debate um artista ao longo de sua vida. Oliveira Silveira submete um trecho do seu percurso textual (1967-1994) a um ponto de vista sincrônico: recupera para o seu (nosso) presente os esboços neográficos que pôde rastrear no passado do seu acervo intelectual-vivencial, e que se foram depositando nas fraturas e nos prazeres do corpo a corpo com a linguagem. Biografemas e fotogramas reencarnados através do fortuito e do forçoso das anotações de punho: leitor de lápis em punho no sigiloso desenho da imagem-pensamento: “Que é uma foto da pessoa morta/ para quem a conheceu/ em vida?/ Em geral coisa opaca e estática/ e pouco diz de quem foi.// Mas quando menos se espera/ pode mudar-se em cor, em movimento,/ sorriso, voz, braços que vêm e cingem/ e nós ressuscitamos” (“A foto”).

No entanto, o poeta ordenou os poemas de maneira cronológica: do mais remoto ao mais recente. Cada peça aparece identificada com uma espécie de subscrito onde constam lugar e ano de realização. Muitas levam dois registros, um assinalando (ao que tudo indica) o momento em que o processo de composição foi iniciado, e outro, onde o poeta estabeleceu um ponto final ou uma interrupção no trabalho de criação. Assim, ficamos sabendo que alguns pequenos poemas custaram ao poeta — sem exclusão de outras realizações significativas, inclusive do ponto de vista extraliterário — cerca de dez anos de oficina ansiosa e ociosa para alcançar sua forma-fundo necessária; outros, ainda, vinte anos e um pouco mais. Portanto, Oliveira Silveira, em sintonia com Ezra Pound, também entende a poesia como essa condensação discursiva onde o vivido e o imaginado comburem transes de tempo por meio da palavra.

Há, grosso modo, uma invariante de cunho estético-informacional a atravessar toda a obra poética de Oliveira Silveira. Refiro-me, naturalmente, àquilo que muitos dos estudiosos de sua poesia chamariam talvez de “o compromisso com as causas negras”. Não entrarei no mérito da questão que aqui vai implícita, isto é, se a poesia teria outras motivações que não as suas próprias, ou se sua “legitimidade” se pautaria fora dela mesma, etc. Digamos, para todos os efeitos, que não conceder atenção ao fato de que a poesia de Oliveira se projeta para além das definições e marcos estabelecidos, não importa por que tipo de embate político, não a torna menos pertinente, inclusive mesmo, para os interesses da causa negra. Por outro lado, desconhecer essa pulsão radicada na estrutura significante da linguagem do autor de Roteiro dos tantãs (1981) seria um falsear crítico, ou um purismo retrô.

O ponto não é esse. Para o bem ou para o mal, esse aspecto de sua obra há muito se tornou como que um fait accompli. Isto está dado. Mas o próprio Oliveira resolvia a coisa para si do seguinte modo, citava o episódio em que Murilo Mendes (1901-1975) uma vez se manifestara sobre seus primeiros livros, marcados por um nítido e “participante” catolicismo. O poeta mineiro, em resposta aos que objetavam, às vezes veladamente e outras frontalmente, o posicionamento estético que resolvera trilhar, se afirmava um “poeta, católico”, mas prontamente complementava, dizendo: “a ênfase está na vírgula”. Assim, Oliveira Silveira não tinha trauma nenhum em se manifestar ou em se deixar reconhecer como um “poeta, negro”, desde que ninguém desprezasse essa vírgula — irritantemente indecidível para uns e outros — imiscuída entre os dois termos. O qualificativo que vem após a vírgula, católico, negro, etc., não é de modo nenhum irrelevante, mas, antes, e tal como o papel da significação no poema, apenas secundário. Ou melhor, trata-se de uma vereda por meio da qual podemos empreender uma leitura possível, provável.

E no tocante a essas questões, Anotações à margem representa também um feliz desvio. Vale dizer, talvez seja sua obra menos negra ou, quem sabe, a experiência mais intrínseca e desanuviada que Oliveira teve com o seu “compromisso histórico” e étnico. Mas o livro não é melhor nem pior por causa disso. Tal situação apenas o singulariza.

Em Anotações à margem o poeta se percebe no inverno da sua idade. Oliveira haure algumas gotas de niilina para poder enfrentar as perdas e a “perspectiva do fim”, e fica um pouco mais rude e dado à filosofemas enfeixados numa dicção que alude a “quadras ao gosto popular”: “Quando eu morrer/ não vou pro céu, vou prà terra./ Apaga-se a chama da vela/ e se extingue o calor que ficou nela./ O resto é com os outros.// Céu ou céu, Terra ou terra,/ tanto faz./ Ou tanto fez”, (“Notas soltas”). Em outro poema, Oliveira Silveira saúda a saudade simulando uma melopéia quase naïf que diz: “Dei ô de casa na frente,/ bati na porta, ninguém abria./ Dei a volta pelos fundos,/ entrei na casa, vazia.”. Modelo de redondilha maior. Notar o uso funcional da anáfora: “Dei ô de casa...”, “Dei a volta...”; do ponto de vista da acentuação não há nenhuma palavra com mais de três sílabas, fato esteticamente significante num poema que encarece a figura da oralidade e do coloquial feito fala que apela ao canto; e, finalmente, em “entrei na casa, vazia”, a presença desta “vírgulágrima” (sirvo-me do compósito verbal criado por Décio Pignatari) incrustada na ostra involucrada do texto, iconização do profundo silêncio, tristeza átona, elipse a deslocar para mais além o que poderia ter sido, passo malogrado em direção à origem.

Uma ou duas aproximações intertextuais. A primeira. Em 1985 Haroldo Campos lançou o livro A educação dos cinco sentidos. Nesta obra há o seguinte poema-divisa no qual o poeta revela: “já fiz de tudo com as palavras/ agora quero fazer de nada”. De um jeitão meio despojado e tentando tirar o peso a tanta polêmica em que se envolvera no período áureo de instauração da poesia concreta, Haroldo de Campos esboça com esse metapoema um acerto de contas, primeiro consigo mesmo, e depois com os seus pares, no que diz respeito ao conflito das visões poéticas em jogo. Pois bem, de certa maneira, em Anotações à margem, Oliveira Silveira pretendeu também um “fazer de nada” com a linguagem e com alguns índices do seu próprio percurso textual, tanto no que se refere à sua condição de poeta, quanto à sua situação de intelectual negro. A propósito, chamo atenção do leitor, por exemplo, para este epigrama quase brossiano: “Agora é tarde, o policial foi preso/ e o vendedor de guarda-chuva/ está todo molhado na rua” (“Deu pra bola”). Em seu derradeiro livro, Oliveira desborda o limiar do identitariamente tolerável. É poeta, e o melhor de nós todos.

E a segunda. Meu amigo e parceiro de canções Alexandre Brito tem um poema ainda inédito em livro que admiro muito. Faço essa menção que, parece, mas não está fora do lugar, pela seguinte razão. A imagem que guardo entesourada do Anotações à margem, por assim dizer, ideal para mim, teria um acréscimo apenas: como epígrafe e chave léxica ao livro de Oliveira Silveira vislumbro estampado em suas páginas o poema de Alexandre, que diz assim: “no dia seguinte/ decifrando os sulcos da caneta/ na página em branco/ ao resgatar o poema posto fora/ encontrei a minha arte”. Com efeito, e felizmente para nós, Oliveira encontrou mais uma vez a sua arte. E, de outra parte, quando foi no Pelourinho decidiu não entrar na igreja de ouro.



Nota[1]
Em 1995 Oliveira Silveira lança em parceria com o músico e artista plástico Pedro Homero a brochura Orixás, obra que reúne a expressão pictórica deste e poemas inéditos ou já publicados daquele, onde exercitam e recriam representações das divindades da religiosidade afro-brasileira.

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