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Quando a análise sai de cena o que ocupa o seu lugar?



Já há alguns anos — não muitos —, o poeta português Luís Serguilha vem tentando, numa espécie de périplo, se situar tanto poética como criticamente no embate às vezes encarniçado da poesia contemporânea brasileira – os envolvidos diretamente com a coisa são useiros em irrigar controvérsias inconciliáveis, e a imagem pode soar um pouco simplista, mas em algumas circunstâncias as posições indicam tanto uma escolha pelo desprezo sem remissão como a ansiedade com que alguns a tomam como fato e identificam-se com ela. Ao mesmo tempo, durante esse período relativamente exíguo, atravessando como forasteiro interessado as quizilas e fronteiras estaduais do país, Serguilha escreveu textos de teor literário e de intervenção cultural para livros, sites e revistas especializadas, e, do mesmo modo, participou de encontros e debates em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Paraná e São Paulo junto dos seus companheiros de geração do lado cá do Atlântico. De outra parte, aspectos da sua obra propriamente criativa começam a ser objeto de análises de alguns poetas-críticos, escritores e acadêmicos brasileiros. Seu ponto de partida na tensão de traçar algumas linhas de força dessa série poética é, de um lado, eclético, e, de outro, interessado em demarcar eventos de linguagem que apontem para uma intrínseca transgressão seja de forma, seja de cosmogonia. Entretanto, não se pode perder de vista que esses elementos se encontram também na base da própria poética de Luís Serguilha, cuja apetência pelas perspectivas da hibridação, por visões de mundo libertadoras e experimentos escriturais localizados para além do normativo, o incitam, ao fim e ao cabo, a se apresentar como um interlocutor voraz em peregrinação quase devocional em busca dessas “batidas” singulares.

Recentemente, cumprindo mais uma etapa desse percurso, Luís Serguilha lançou pela Lumme Editora (2008) um misto de estudo e texto poético em cujo título e subtítulo se denuncia a perspectiva de certa forma alucinógena do seu pensamento estético-filosofal. O livro atende pela simpleza onomástica de Roberto Piva e Francisco dos Santos (poeta e pintor-poeta respectivamente), mas que contrasta com a justaposição carregada de senhas do subtítulo compósito que se lê a seguir: “Na sacralidade do deserto, na autofagia idiomático-pictórica, no êxtase místico e na violenta condição humana”. Para quem não conhece a linguagem do poeta português o subtítulo soa fora da medida e algo pitoresco. Inobstante, o conhecimento prévio – caso em que me situo – de sua escritura desbragada e controvertida não autoriza o crítico a qualquer forma de leniência com relação ao texto e às ideias que tem sob sua vista. Há uma complexidade no título e na descrição que o subtítulo enseja que merece um comentário.

Em primeiro lugar, o aparentemente singelo enunciado Roberto Piva e Francisco dos Santos quando visto mais de perto, não faculta ao leitor o que antes parecia lhe prometer, ou seja, um cotejo objetivo entre os dois criadores, focado talvez nas complementaridades e nos atritos que entram em cena quando tais formas de linguagem (poesia-literatura e pintura) são postas em relação. Na verdade, esse texto serve antes de preâmbulo a uma exposição mais longa e vertiginosa sobre os aspectos compositivos de mais de uma dezena de poetas brasileiros de hoje e com quem Luís Serguilha vem entretendo alguma forma de interlocução. Os poetas do paideuma um tanto pós-moderno de Serguilha, pelo que contém de ecletismo muitas vezes desmesurado, sem prejuízo de suas particularidades (mas, que a metalinguagem do analista acaba por anular, inadvertidamente, devido à sua excessiva reflexividade), expressariam em seu conjunto o traço comum de operarem em suas obras a “violência contra a geografia do leitor”. Mas, acho que estou me adiantando um pouco. Voltarei a esse ponto mais tarde. Antes será preciso abordar o texto que dá título a obra, e que abrange cerca de um terço de sua totalidade.

Indo direto ao que me interessa. Por que razão, Roberto Piva (morto recentemente) e Francisco dos Santos, em se tratando das condições brasileiras, se prestam como criadores paradigmáticos para o pensamento de Serguilha, a ponto de parecerem incontornáveis, marcos irremovíveis de um percurso? Pelo que a obra nos sugere, a começar por seu título, o poeta e o artista visual se constituem em sinédoques se não virtuosas ao menos instigadoras da expressão poética e plástica contemporâneas aqui no Brasil. Mas, tal distinção, ou responsabilidade, se justifica? Não me parece, por outro lado, que Luís Serguilha pretenda meramente entronizar esses artistas, fazendo-os ocupar um lugar de proeminência, destituindo, por consequência, outros que com o passar dos anos começaram a representar influência supostamente nociva para a formação do nosso repertório. Sou forçado a fazer essa consideração, pois, nos últimos anos, tenho notado aqui e ali (a percepção é empírica, sem nenhum método) manifestações cujo teor, grosso modo, é acusatório a propósito de uma tradição “muito cerebral” que seria, por assim dizer, predominante em nossa poesia e, por sua vez, imporia interdições às linguagens mais emocionadas, imagéticas e descomprimidas. Assim, meu interesse é relativizar, por meio de uma suspeição menos arrivista que respeitosa, o relevo dado a essas escolhas do poeta-crítico Luís Serguilha. Infelizmente, não podemos confundir o debate concedendo uma dimensão desproporcional às questões relativas à preferência ou ao gosto que certamente estão implicadas nesses casos. Mas, agora, deixemo-las um pouco de lado, tanto no que me toca quanto no que eventualmente tenha tocado a Luís Serguilha durante a fatura dos ensaios enfeixados na obra em apreço.

Começo o debate pelo poeta. Roberto Piva é o autor paradigmático (ou a matéria do momento) dessa atmosfera retrô que consagra como reparação determinados artistas que se encontrariam “à margem da margem”, standards do exílio estético-existencial condecorados com as medalhas seja do silêncio, seja do rechaço frontal ao seu nome. Piva é uma dessas personalidades poéticas que, talvez mesmo à sua revelia, conquista alguma forma menor de notoriedade, mais pelos óbices reativos com que o meio social do período o admite do que por seu labor propriamente artístico. Seu nome volta à ordem do dia mercê da militância devota de alguns sobreviventes de sua geração e dos “seguidores” da juvenília presente, retardatários da beat generation e de uma escrita delirante e magmática. Décadas de repressão moral e política, cuja resistência utópica afirma um ecumenismo lisérgico como atitude contracultural, servem de instâncias mitificadoras desses estetas pós-modernos, fusão de bandidos e de figuras da pop arte sob uma asquerosa luz vermelha. A poesia de Roberto Piva se comporta previsivelmente dentro desse contexto esboçado. Seu surrealismo de paulista classe-média, mais requentado do que descabelado, se esvai numa enfiada de metáforas seriais cuja fanopeia é perdulária, e seu festejado sincretismo resulta poeticamente primário: um devaneio naïf sob a égide do desbunde.

Mas o que garante sua permanência nos escalões intermediários do florilégio da literatura contemporânea é, mesmo, a musa homoerótica que abraça. Piva pratica um verso livre de cunho inercial enquanto canta, ao som de guitarras distorcidas, a pulsão “sexual transgressiva e contestatória, sem falsos moralismos, anárquica e jovem”. Sua escrita em transe representa um acanhado experimento de liberdade sob formas repressoras de controle social. Por outro lado, a atitude poética de Roberto Piva parece ter sido a prefiguração de toda uma poesia que, hoje, se beneficia cada vez mais de aspectos exteriores ao próprio poema, o que, aliás, reflete uma espécie de preferência cultural contemporânea no que respeita ao gênero. Preferência que pretende farejar nas roupas de baixo da poesia, aspectos, por assim dizer, mais curiosos e existenciais. Com efeito, situações de significação antes secundária, tais como, se o poeta é dublê de xamã, se é gay, se é suicida, se representa a poesia afro-brasileira, se vive socado no pantanal, se é da periferia, se foi abusado na infância, se o uso de drogas o fez perambular pelas estradas tornando-o uma espécie de monge, se a iluminação súbita do haicai o converteu ao zen-budismo, enfim, todos esses elementos de catalogação que compareciam sempre após a vírgula, justificam e tornam pertinente a maior parte da poesia aceita hoje. Não basta procurar e reconhecer o bom poeta, tornou-se imperativo que ele(a) diga coisas contundentes desde o lugar de sua diferença social, sexual e antropológica.

Francisco dos Santos, o pintor. Luís Serguilha se serve do hífen para discutir as interações entre palavra e visualidade na obra do artista e nos apresenta o pintor-poeta. De minha parte, me sirvo também do hífen, mas para trazer a lume “as afinidades eletivas” implicadas no movimento das consagrações recíprocas em que se baseia o panorama da literatura contemporânea, e faço dar um passo à frente o pintor-editor. A gramática visual do pintor-poeta, Francisco dos Santos, tem o desenho como um dos eixos do seu processo compositivo, e, sem escapar, talvez, de um traço geracional, incorpora alguma coisa da “lama estelar” (Ferreira Gullar dixit) do neo-expressionismo de Iberê Camargo. Índice de um vezo pós-moderno em sua linguagem pictórica é também essa apetência pelo figurativo, ou melhor, pela representação transfigurada (ou “desfigurada”, se fora o caso de confrontá-lo a Francis Bacon) da figura humana, cujos esboços fantasmáticos e texturas de que se serve para metaforizá-la, encerram índices e rasuras exasperantes, tracejados dolorosos sobre um fundo sujo, por assim dizer, de brancura derrisória. A esse respeito, sua série de quadros intitulada Diálogo com Goya fornece uma key lexical possível à aventura interpretativa do fruidor. A arte contemporânea é de matriz metafórico-objetual, isto é, lida com possibilidades imaginativas e associativas livres no intuito de presentificar ou reificar uma imagem-pensamento num particular espaço-evento onde objetos se relacionam e acabam por simplesmente materializar uma metáfora mental na forma do trocadilho transitável. Por essa razão, a arte contemporânea cria um discurso cenográfico antes de tudo; cenografia para uma justaposição de coisas e objetos: tautologias, coleções de nulidades resgatadas ao inferno biográfico do artista. Aqui chegamos ao ponto que importa: a pintura de Francisco dos Santos faz ouvido de mercador a todo esse ruído de fundo? Sua aparente indiferença seria ela mesma uma forma de se situar sobranceiramente?

De chofre, Luís Serguilha nos conduz ao segundo momento de seu estudo. Não obstante o poeta marcar essa transição da reflexão sobre Piva e Dos Santos para a validação/avaliação de alguns nomes da poesia de agora-agora evocando uma “sequencialidade/circularidade ourobórica”, na tentativa de atenuar a elipse crítica, a passagem ainda resta abrupta. O texto termina em dois pontos. Não há numeração de páginas (é de supor nisso um conceito editorial). E o capítulo dedicado aos poetas de sua eleição, encimado apenas com o número um em romano, se inicia assim: “A circulação da consciência homérica interroga intimamente as identidades poemáticas/cosmológicas transcendendo as correspondências das intensidades cartográficas até a exaustão dos limites arqueológicos/cinematográficos”. Esse primeiro bloco textual aborda a escrita de Horácio Costa. Os comentários seguintes mantêm o mesmo tom e sintaxe, as mesmas curiosidades expressionistas: extensos “underlines” pontuando pausas que fracassam o discurso, maiúsculas interjetivas, editoração cuja tipologia vai em versalete, fraseado paratático, enfim, toda essa massa textual crítico-extravazante trabalhada por Serguilha se desarvora em prosa semiótica, e dobra-se sobre si mesma menos analítica do que analógica. Ao final de cada texto (espécie de verbete verborrágico), seguindo um modus faciendi, Luís Serguilha aplica o nome daquele poeta que foi objeto de sua singular exegese. Mas a sensação resultante é a de que o crítico cola os nomes aos textos como quem dá as cartas num jogo de baralho. Insistindo na metáfora: conclui-se que, numa outra rodada, as cartas podem passar aleatoriamente para outros jogadores. O que importa, ao fim e ao cabo, é o modo delirante como Luís Serguilha dá e dispõe as cartas. O que ele avança a respeito da linguagem de cada um dos autores entra na conta do seu como dizer, sempre metaforicamente maciço e irredutivelmente pessoal. Sua precipitação crítica não é senão um subdiretório de sua produção criativa que elide a linha liminar entre poema e prosa. Por fim, não sabemos nada a respeito da poesia dos poetas enfileirados pelo texto total-fractal do poeta-crítico (o que em alguns casos representa um alívio), mas ficamos repletos de sua música devastadoramente caótica e turbilhonante. Uma forma de discurso plasmado na compulsão maneirístico-convulsiva da linguagem. Abrigadas sob os vastos hangares do texto serguilhano, as diferenças interessadas e interessantes entre os autores se embaralham num ecumenismo epidérmico. Temos, por fim, apenas o messianismo estético do poeta-crítico português, uma espécie de autorretrato, um questionamento que ele dispara contra si mesmo, e a resposta é menos interrogação do que aporia adjetiva.

Comentários

Muito bom!

Se quiser tomar um cafezinho, é só vir me visitar!

www.borboletasesquizofrenicas.blogspot.com
Muito bom!

Essa leitura me faz pensar e aqui revelar o árduo trabalho do Crítico Literário. Nem sempre lemos a isenção do sujeito leitor para que apareça o Livro...

Então,repenso: o que seria influência de leituras e o que é Crítica Literária? Como analisar um Livro sem ruídos próprios? Como preservar o estilo, que é intransferível, de quem lemos?
Difícil, não?

Um beijo.
Kátia Torres disse…
Texto para ser lido e relido.

Parabéns!

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