Pular para o conteúdo principal

O simbolismo bauhaus de Sob a faca giratória





A divisa carrolliana segundo a qual, no que toca à poesia, “a questão é fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes”, preside a gestalt esotérica, ou o hermetismo compositivo de Péricles Prade. E em favor do que acabo de afirmar, servem de exemplo tanto os livros anteriores (não importando, inclusive, o gênero) deste polígrafo de imaginário radical, como a obra que agora é objeto do breve comentário.


Por um momento, e pela via do contraste, submeto Sob a faca giratória a um jogo de plano e contraplano com o hermetismo lato sensu da poesia de Orides Fontela (1940-1998). Para ser mais preciso, antes opaca do que hermética, a linguagem de Orides também se impõe desafiadora, metálica. Seus poemas compõem um tipo de tratactus analógico acerca dos fenômenos, e estes acabam por ser representados como sombras luminosas que se descolam dos nomes que lhes designam. A poeta nos oferece esta sensação de hermetismo pela elisão e pela rarefação dos cortes solares que opera; o idioma estético resultante é esturricado e masculino em suas sugestões. De outra parte, o hermetismo de Péricles Prade se projeta em fulgurações lunares; o texto revém sempre proliferante e fêmeo. Seu hermetismo é voluptuoso e, portanto, não faz o elogio à esterilidade de consistência mallarmaica. Metonímia ou duplo microestrutural do conjunto da produção de Prade (pois o escritor reitera valências em seu nomadismo), Sob a faca giratória se remorde em torções e texturas a maneira de Gaudí. Subjaz ao apetite de linguagem do poeta a ideia de que cada poema engendra o seu próprio dicionário, bem como a sua própria gramática, que tem mais de anômala do que daquela “verdadeira ars obligatoria” referida e saudada pelos escolásticos.


Deste modo, em Sob a faca giratória gozamos uma poesia a contrapelo do “automatismo psíquico”, um processo de fatura verbal na véspera de conceder crédito ao signatum (o “artista na véspera do desenho”, corajosamente ambíguo frente ao aspecto inteligível do signo verbal); o sentido como um vir-a-ser; uma hesitação. Wittgenstein, a propósito, metaforiza assim a impossibilidade de uma “última” explicação a respeito do que quer que seja: “É o mesmo que dizer: nesta rua não existe uma última casa; pode-se sempre construir uma nova.” Sob a faca giratória: o percurso inacabado, e, mesmo, a contragosto, do subjetivo em direção à objetividade plana do senso comum. E esta, por sua vez, perturbada ou tornada irrelevante no deparar-se com unicórnios, serpentes, livros mudos, dorsos inquietos, enfim, diante dos sistemas imaginários plasmados por Péricles, cujo escopo pulsional captura suas forças, inapelavelmente, no interior da linguagem, entendida como discurso em que seu decurso tem a escala dos objetos arte-feitos.


Em Sob a faca giratória não há concessão à sentença compreensível. O que importa é o alucinante fraseado (acepção musical); as ideias decupadas em ícones sonoro-visuais. Seus aforismos não são senão disfóricos, isto é, não cabem inteiramente na figura do lenitivo filosofante, e nem devem ser requisitados para mitigar cólicas metafísicas de almanaque. Sob a faca giratória me faz evocar uma iluminação de Barthes segundo a qual o prazer do texto é “o valor passado ao grau suntuoso de significante”. O impreciso se torna preciso, ou seja, materializa-se no provisório. Serpente sempiterna de pensamento-arte, que se dobra sobre si mesma (ou serpe-lâmina que gira em torno do seu centro). Erotização como a desmedida do desejo pelos signos, coisas-semas que Péricles Prade apalpa feito o cego Tirésias criptografando e fruindo o íntimo desses seres e símbolos na própria pele do aparente com que se honoram.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão ...

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a...

o falso problema de ugolino

A arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva (abstrações, recortes, rasuras, reduções sintáticas, etc.) que se limita complementarmente com uma - aparente - scriptio plena . Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído em Nove Ensaios Dantescos (1982). Nesse breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio em que Ugolino supostamente devora, vencido pela fome, os cadáveres dos próprios filhos e netos (Inferno, XXXIII), não passa de inútil controvérsia. Borges sustenta a tese de que deveríamos propender a uma análise estética ou literária do episódio em questão. À pergunta de índole historicista, Ugolino com...