Desencantado carrossel e a decadência da infância
Um dos traços da modernidade de Cervantes na composição do Quixote diz respeito à (in)definição de quem narra de fato as aventuras dessa novela paródica dos romances de cavalaria. A multiplicidade de narradores estabelece uma ambiguidade contínua de tempo e de pontos de vista relativamente ao motivo central do livro. O romance moderno inspirado no clássico cervantino leva às últimas consequências, embora sem propor-se a uma resolução, a dúvida de quem seria a voz narrativa. Tal condição impõe ao romance similitudes com o poema moderno.
Paul Valéry, a partir dos ensinamentos de Mallarmé, diz que quem fala no poema é a própria linguagem. Com efeito, em muitos poemas de agora-agora se pode dizer que nem mesmo uma voz lírica se faz ouvir. Chegamos, por assim dizer, a uma opacidade ou a uma enunciação átona no campo do discurso literário.
No entanto, lendo o livro de Diego Grando, Desencantado carrossel, percebo uma possibilidade expressiva (posto que em andamento) a incorporar tanto o eu lírico das convenções do artesanato poético, quanto essa música calada na e pela linguagem que vem a se constituir em todo o sal do poema de vanguarda, esse espécime refratário ao conto, à narração, enfim, à épica.
Digamos, de modo abreviado, que os poemas de Diego Grando em seu livro de estreia, denunciam um eu lírico (uma voz lírica) que afivela a persona, isto é, fala “através” do it da linguagem. A verdade é a seguinte: as vozes lírica, épica e dramática, não são senão metáforas de processos compositivos, do mesmo modo que a tópica (oriunda do simbolismo lato sensu) da “linguagem que fala por ela mesma” também o é. A voz de Diego Grando se plasma por meio de uma metáfora construtiva; o constructo poético de Desencantado carrossel simula um verismo contemporâneo e pessoal em formação, movimentando-se por entre índices de cotidianos familiares numa grande pequena metrópole fechada em seus muros.
Os poemas evocam o ritmo de um flâneur, mas que gira e bate sola não segundo a mitologia baudelairiana da volúpia e da ordem, e sim em consonância com o “Tempo de ter pressa/ de correr do tempo...”, com “o resmungo dos coletivos”, com “o sinal que era vermelho/ e em seguida ficou verde”, com uma “Vontade de vento/ e velocidade” que deixa para trás o menino. O flâneur que põe em movimento o Desencantado carrossel de Diego Grando é tão trágico quanto os tênis, que ele naturalmente calça, o possam permitir.
Essas breves notas podem chegar ao seguinte desfecho: Desencantado carrossel canta, entre outras coisas, a decadência da infância do ponto de vista da acídia da juventude (sim, ela não confina apenas com o idealismo) que põe em causa o mundo a partir da linguagem. Eis aí minha proposta de leitura, quem quiser que tente outra. Nisto, a estrofe final do poema “Identidade” diz assim: “Covarde, me descobri poeta/ e me tornei pequeno demais para caber no mundo/ e aprendi a remoer as coisas/ de criança”.
Sem alternativas à Vida cachorra
Há pouco fiz uma leitura (farei outras, espero) do livro Vida cachorra de Mariel Reis. O título sugere um autor filiado àquela forma de prosa aderente à tópica da vida-como-ela-é. E inclusive o tratamento dado ao material verbal com que mimetiza a oralidade moldada pela crueldade de certas vidas representadas nos contos, reforça essa sensação de que estamos imersos em definitivo no dédalo dos subúrbios onde a violência já parece ser congenial à geografia humana que aí vive.
Assim, o intrincado das vielas e ruas com que essas cenas nos são apresentadas, o enviesado dos trajetos e becos desembocam à flor das falas e dos depoimentos (no sentido da crônica policial) de muitos personagens de Vida cachorra. Resta, então, um “dizer sem melindres”; e a delicadeza fica reservada à parte, para depois.
Mas, com o perdão do trocadilho, sinto falta, nesta literatura que não capitula ao que quer que seja, de algo como uma “questão Capitu”, ou melhor, nesses contos de Mariel Reis parece não haver chance para a ambiguidade, nem para a dúvida. Em Vida cachorra a ficção resulta deprimida na sua relação crítica com o real. Mariel Reis não quer que o leitor suspeite das imagens e dramas que passam diante de seus olhos. Talvez eu me engane, mas o autor de Vida cachorra vai a contrapelo (e isso não é ruim, nem bom em si mesmo) do que afirma Jorge Luis Borges, ou seja, de que “No tempo real, na história, sempre que um homem depara com diversas alternativas opta por uma, eliminando e perdendo as outras; não é assim no ambíguo tempo da arte, que se assemelha ao da esperança e ao do esquecimento”.
Neste sentido, arremato essas anotações passageiras ao motivado livro de Mariel Reis com um pensamento de Édouard Glissant que me parece um interessante insumo a propósito do que até aqui se tratou na resenha. Deste modo argumenta o escritor antilhano: “No que concerne às nossas literaturas, no exercício da prosa os escritores acreditam muito facilmente que a descrição do real dá conta desse real. Seria mais ou menos como os pintores que pintam quadros de costumes ou de gênero. Acreditam, dessa maneira, dar conta da realidade. Mas estão completamente enganados, porque ela é outra coisa que não essa aparência. Ora, a poesia até os nossos dias é a única arte que consegue realmente ir além das aparências”.
Por meio da poesia, isto é, por meio da precisão do impreciso, o leitor pode situar a “realidade do real” (ou supor sua irrealidade) num ponto indecidível de sua imaginação; basta que disso suspeite ou que a julgue possível. A par de se prestar a tema literário, a vida, mesmo que cachorra, ainda pode não passar de um sonho.
Comentários
Um abraço Ronald a ti e aos colegas do grupo de oficina,ando viajando, agora no Rio, boa conferência amanhã na ALF e até a volta.
Boa semana.
Carmen.
Muito bem. Sou leitora do blog e discordo sobre o livro Vida Cachorra. A ambiguidade se faz notar já no conto "amor filial", trata-se de um duplo que além de quebrar a idéia de uma literatura realista, empresta outra perspectiva a narrativa. Como? Quem será mesmo o narrador? São xérox um do outro, não?!
Abraços
Camila