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Cleci Silveira, recriando personalidade e emoção



Contrariamente ao que acontece com a maioria dos artistas da palavra cujos percursos textuais denunciam com o passar dos anos uma flagrante tendência à acomodação, há outra linhagem de criadores que não acompanha este fluxo até certo ponto entrópico. Pode-se dizer que os representantes de tal linhagem preservam, a contragosto do habitual, incorruptíveis sua vitalidade e juventude.

Enquanto os primeiros, de ordinário, perdem o entusiasmo a partir do momento em que chegam às portas da “impudente idade do bom senso”, os segundos se insurgem contra a regra e passam a encarar a tradição menos como coisa herdada do que como conquista permanente. E desde o irredutivelmente pessoal de suas preferências estéticas estabelecem, por assim dizer, um desejo de abandono da consagração como topo cumulativo de feitos. Enfim, eles conservam intactos dentro de si o jovem artista e sua ininterrupta curiosidade.

Pois é nesse rol que gostaria de ver incluído o nome de Cleci Silveira. Já que com a publicação desse conjunto intitulado Poemas de aprendiz, a autora reverte a nossa expectativa estabelecendo um desvio, uma área de escape dentro do seu itinerário textual. Isto é, a consagrada prosadora (autora de, entre outros, A trama do silêncio, O tocador de saz e o sultão, e Além da porta) estreia agora como poeta. Essa constatação coincide com a opinião de Luiz Antonio de Assis Brasil sobre a escritora, para o romancista trata-se “de uma autora que surpreende a cada obra, e surpreende para muito melhor”. Com efeito, Cleci não se acomoda; ao invés de ceder à redundância (ou seja, fazer o que sabe) nos oferecendo, se fora o caso, mais um belo livro de prosa, ela decide conquistar para si o direito ao risco planificado de escrever e publicar um volume de poemas. Interrompe, portanto, o ciclo da redundância virtuosa (a admirável prosadora) com uma informação nova (a poeta in progress).

O interessante é que esse novo lance textual que experimenta, se dispondo ao desafio, não significa uma contradição, já que, a rigor, pode ser interpretado como a afirmação de uma escritora que se quer em movimento. A poeta Cleci Silveira surge para provocar a instabilidade; em outras palavras, ela afirma o valor da liberdade artística. O livro em apreço ratifica a ideia de que o processo compositivo do escritor envolve dois momentos cujas fronteiras não são assim tão nítidas; ao mesmo tempo esses momentos não obedecem a um traçado linear ou de causa e efeito, eles são relativos e relacionais. Ou seja, todo experimento literário (e artístico) implica uma dialética de “repetir para aprender” e “aprender para criar”. Neste sentido, quando Cleci Silveira resolve chamar seu livro de Poemas de aprendiz, me parece que podemos ler nele essa tensão inventiva – sem a qual não pode haver arte – que marcou o apetite da autora nessa viagem ao (seu) desconhecido que é a poesia.

Dizem alguns escritores que a literatura não precisa de revolução, mas sim de palavras. A revolução que interessa se dá por dentro. Pode ser. Em princípio não há problema nenhum em tentar fazer uma revolução para o outro, para fora. Cleci fez também a sua revolução, ou antes, a sua segunda, só que agora se embrenhando na poesia. Explico-me, segundo a tese irônica do poeta concreto Décio Pignatari, uma revolução completa em literatura pressupõe duas meias revoluções, isto é, uma a se cumprir na prosa e outra na poesia. Embora o crítico não pretenda apostar todas as suas fichas na pertinência das formas híbridas dentro da economia estética contemporânea, o que é razoável discernir de sua proposição, em fim de contas, é que não é possível a um poeta produzir poesia de importância se este se recusa à convivência com a prosa. E, de outra parte, o mesmo vale para o prosador no tocante à poesia.

Ainda no capítulo das teses (todas elas refutáveis), um amigo meu, o escritor Fábio Brüggemann, defende uma que diz o seguinte: só se pode ser bom poeta até os 25 anos, porque depois toda a rebeldia da linguagem a que o jovem se propõe a imprimir em seus versos se transforma, com o tempo, em vício ou em fórmula. E do contrário, só é possível ser um bom prosador depois de velho, principalmente para quem se aprofundou nos bosques da ficção e, além da experiência com a arte da escrita, acumulou a experiência com a existência. Neste caso, se levarmos a sério o quadro acima proposto, Cleci Silveira, mais uma vez reverte a expectativa. Contra natura ela investe suas forças na poesia restaurando no outono a primavera da linguagem. De outra parte, no momento exato da colheita dos louros advindos da experiência de vida, Cleci põe de lado, transitoriamente, a prosa e os prazeres da demora inerentes ao gênero para se dedicar à rapidez e à elipse da poesia.

Não é um despropósito usar a metáfora da “primavera da linguagem” para definir a tarefa poética. A poesia é a linguagem de partida de todos os demais discursos verbais. Cleci reconhece isso ao convocar em “Primeiro poema” o poder desse afazer que evoca a música de

certa valsa triste

dum setembro ido

no canteiro úmido,

assim, Poemas de aprendiz se abre ao leitor como um álbum onde a memória é revivida na tensa tranquilidade do presente. A nostalgia passa pelo crivo da consciência de linguagem. Afinal, não há garantia de que o leitor será seduzido pelos recursos poéticos que lhe são oferecidos poema após poema. Cleci Silveira sabe que a comunhão poética ou esse singular ato comunicativo está sempre aberto ao impreciso; trata-se de uma aventura, ou como se lê no poema “Voltar”:

no céu

procuro um interlocutor com quem repartir palavras

Mas esse “céu” – e me perdoe o leitor por lhe atormentar com minha provisória tresleitura –, esse “céu”, referido no excerto acima, pode ser o da linguagem. Interlocução e diálogo (conclusivos ou não) só são possíveis no interior da linguagem.

Alguém já disse que poesia não é enunciação; a rigor não é nem comunicação. O poeta e místico San Juan de la Cruz a define como uma “música calada”. Em poesia os ritmos e os arranjos sonoros relegam os significados dicionários e o bom senso a uma zona secundária. O ritmo e a música verbal fazem a poesia persuasiva e não informativa. Mas isso só alcança um sentido forte e valioso devido ao desejo de dois tipos de mentes poéticas: uma apta a inventar poemas e outra disposta a crer neles. O poeta fingidor precisa de um leitor igual. Esse leitor se alegra por sentir que a poesia pode comunicar-se antes que seja compreendida. Talvez o poema “Vendaval” fale sem falar, entre outras coisas, algo a propósito disso, julgue o leitor:

Amanheço, aos poucos, quando há vento

O ar apressado deixa exausta minha lucidez

Só mais tarde, os olhos bem abertos, a mente alerta

Tento escrever alguns versos

Que ainda trazem o desalento da noite

Tentar “escrever alguns versos” me remete à tópica do poeta ensimesmado que considera tanto os fracassos, quanto as possibilidades expressivas do seu meio. Esse tema também foi cantado de modo rigoroso por Carlos Drummond de Andrade, e no livro José (1942) pode-se ler o poema “O Lutador”, cujos primeiros versos dizem: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã...”, e mesmo assim o poeta volta a lutar mal rompe a manhã. No cerne desse embate mais uma vez nos deparamos com os dois pólos que justificam a arte da poesia, isto é, o “repetir para aprender” e o “aprender para criar”. Esse trabalho, ou melhor, essa viagem sempre recomeçada a cada texto (sistema que se exaure e se renova a cada gesto poeticamente crucial) é a antiga novidade e sua duradoura efemeridade que, de ordinário, nos comovem. Entre as capas de Poemas de aprendiz Cleci Silveira descobre o saudoso e o corrosivo desse ofício do verso: a varanda ensolarada e o cheiro de mofo; o prosaico namoro no portão e a luz mediterrânea, homérica. Enfim, compõe poemas feitos à semelhança do desejo do leitor sensível e ao mesmo tempo afeitos à tradição, e que recriam, para além do lirismo funcionário público, o vivido e o imaginado. Além do mais, os versos de Cleci, graças à sua porção prosadora, são sempre graciosamente narrativos, não distinguem entre cantar e contar, e seguem vizinhos aos versos do português Jorge de Sena, que dizem: “Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito./ Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,/ quando fico triste por serem palavras já ditas/ estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos”. Cleci Silveira expressa o mesmo, mas de maneira diferente, isto é, inventa a sua própria metáfora interpretativa, ouçamo-la:

são apenas dedos fugitivos

a dar vida às teclas de um piano

que, de tão velho, o carregaram cupins

Acho oportuno fechar o artigo com o famoso lembrete do poeta T. S. Eliot a propósito da relação entre poesia e emoção, pois a observação me parece caber à maravilha para esse feliz aprendizado poético que Cleci Silveira resolveu dividir conosco publicando Poemas de aprendiz, escreve assim o mestre do modernismo: “a poesia não é um perder-se na emoção, mas um escapar da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade”, mas Eliot acrescenta em seguida e rapidamente: “porém, de fato, só aqueles que têm personalidade e emoção sabem o que significa querer escapar dessas coisas”. Com efeito, personalidade e emoção são valores e figurações com respeito às quais a fineza da linguagem contida em Poemas de aprendiz não descura em nenhum momento. Cleci Silveira escapa com arte de ambas.


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