Giba Giba negro. Giba
Giba bom. Giba Giba sempre de bom humor. Em respeito ao que é irredutível ao
homem e ao músico Giba Giba, morto recentemente, interrompo por aqui a pequena
analogia intertextual em que o ponho em relação com a personagem do poema “Irene
no céu” de Manuel Bandeira. Primeiro porque embora a atitude de Giba Giba, no
que toca à sua inserção na tradição cultural e musical de Porto Alegre e do
estado, tenha traços mais conciliatórios do que de confronto, não me parece
possível associar sua imagem à do negro da casa-grande que, como a Irene de
Bandeira diante de São Pedro bonachão (cara cor de fiambre) e às portas do céu,
talvez se dobrasse humildemente a perguntar: “dá licença, meu branco?”.
O riso eterno da
caveira de Irene ainda é perversamente desejado. Sequer no recinto sacrossanto
da morte é permitido ao negro não pedir licença. Vá que o poeta tenha bolado um
desfecho ambíguo: a anedota lírica oscila entre “humor negro” e humor de
branco, o que, afinal de contas, dá no mesmo. A promessa de tolerância ad eternum se dissolve no éter divino. Menos
alforriada que purificada pela morte, Irene não está livre de sua “vida de
negro”; desgraçadamente só ela dá mostras de não ter assimilado o golpe. Enfim,
Irene continua negra, ou seja, naïf,
burrinha. As luzes do seu espírito não são intensas a ponto de isentá-la da
pecha de “faísca atrasada”.
Por isso interrompo a
analogia. E mesmo que a personalidade de Giba Giba não denuncie, ao menos para
mim, nenhum sinal de arrogância ou de hostilidade, não consigo representá-lo,
ainda mais levando em consideração a mudança substancial por que acaba de
passar (isto é, agora é egum no além-túmulo), pedindo permissão para avançar pelos
céus sempiternos. Aliás, não vislumbro Giba Giba entrando nesse céu onde os
santos, de ordinário, seguem o modelo do Filho do Homem, ou seja, são brancos
como as nuvens em que se postam, têm olhos azuis e conservam os cabelos
alisados ao limite vergonhoso da chapinha. Mas que céu pode se prestar ao nosso
sonho de céu?
Giba Giba passou para o
orum: Giba gira. Foi. O orum, o reino dos mortos da mitologia iorubá. Do outro
lado desse muro ele calca leve o limo propiciatório sem pedir licença a
ninguém. No orum não tem senhor, não. Mas eu quero e vou mudar de tom, de jira.
Giba Giba merece um oriki. Esse breve texto pretende ser um oriki de orixá. Do
orixá Giba Giba. Um oriki em giro de prosa. Música de poema em prosa. Prosa de
oriki. Num oriki de orixá todas as coisas que são ditas do orixá são os nomes
pelos quais ele atende. Uma narrativa de atributos. Conjuro Giba Giba por meio
de uma série de nomes-atributos e alguns biografemas.
A terra pulsa sob o
peso dos passos de Giba Giba que dança forte. Nos arredores do Mercado Público,
eu via de longe Giba Giba que vinha, sempre rindo, cantando sempre e carregando
no trêmulo do seu corpo graúdo uns meneios de Ossanha. Giba Giba e sua estatura
que rivalizava com a de Oliveira Silveira; acho até que suplantava o poeta. Travei
contato com Giba Giba duas ou três vezes, e em todas as ocasiões quem servia de
mestre de cerimônias, fazendo o obséquio das apresentações, era Oliveira. Giba
Giba esticava a mão: eu ouvia a voz rouca e meio álacre saindo de seu corpo
robusto ainda que com uma constante marca de convalescença: a manha de Ossanha
na ginga de Giba Giba. Frágil gigante, símile dos orixás. Giba Giba assopra o
espírito do ritmo no couro do sopapo. O sopapo é coextensivo de Giba Giba. O
sopapo é dele e ponto: negro pronto. O brugurundum do sopapo serve de nome ao
orixá Giba Giba, Gilberto Amaro do Nascimento, senhor da Praiana verde e rosa.
As senhoras pelotenses e o papo sestroso do Negro Bonifácio, precursor por meio
de quem digo este meu orixá. Muque de Ogum no som do sopapo. Sopapo roncador na
dicção rápida e truncada de Giba Giba. O ori de Giba Giba, sua cabeça interior,
o couro todo do tambor parrudo, ágil como o pensamento. Nelson Coelho de Castro
cantando um samba dolente para Giba Giba, mais nada.
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