Ro
nald Augusto
Em uma cena do excelente documentário A história do Jazz de Ken Burns, o compositor Duke Ellington, ao
ser indagado por seu entrevistador sobre a questão de onde, de que lugar insondável, tirava as ideias para as suas
composições, o músico e maestro responde, de início, que se vê sempre sendo
assediado por uma infinidade de sonhos, portanto, o que ele mais faz é sonhar,
o tempo inteiro. O jornalista e crítico, sentado senhorialmente em sua
poltrona, reagindo à indolente resposta com uma ponta de ironia e como se
executasse um xeque enxadrístico, retruca: “mas eu sempre pensei que você
tocasse piano” (“tocar piano” = fazer música), e Duke, desguiando – como diria o escritor João Antônio – e encerrando a virtual
partida com um mate maravilhoso: “isto
não é piano, é sonhar, ouça...”. Neste momento, Ellington, que até então estava
preguiçosamente encostado ao instrumento, mão no rosto, de pronto se posiciona
e começa a executar uma harmonia ao piano, mas o músico faz isso como se
apresentasse uma argumentação irretorquível; depois, enquanto seus dedos
desenham um acorde, olha para o contrabaixista, e ambos sabem o que está
acontecendo. Por fim, Duke Ellington se volta para o especialista em jazz e
diz: “isto é sonhar”.
É a partir dos sentidos desse pequeno, porém, significativo episódio
protagonizado por Duke Ellington, e do seu argumento como performance
notadamente não-verbal, que me disponho
a fazer essa breve abordagem do álbum Ou
não (1973) de Walter Franco que, em 2013, comemorou o quadragésimo
aniversário de seu lançamento.
Cumpre anotar que aquilo que para Walter Franco, com relação à sua
expressividade musical, terá sido sonhar
– isto é, a materialização de suas composições como uma espécie de
determinação significante de um imaginário a ser dividido com o público –, do ponto de vista de algumas camadas da
recepção, foi realizado de tal modo que sua arte se converteu em uma forma de pesadelo. Isto tem alguma analogia, por
exemplo, com a proverbial dificuldade que o público médio tem em relação à
música erudita contemporânea ou, de resto, com a música que não é cantada. Para
o ouvinte-tipo dessa faixa recepcional, a chamada música erudita contemporânea
– por força de sua autorreflexividade, seus indicativos dodecafônicos, atonais
e eletrônicos –, soa como um pesadelo relativamente ao sonho com que, por sua
vez, a música popular é fruída pela maioria e cujo interesse é mais pelo
entretenimento do que pela ilustração musical.
Também por analogia, o sonho musical de Walter Franco talvez tenha algo
a ver com o sonho poético-visual de Arthur Bispo do Rosário. Walter Franco não
deixa de ser uma espécie de sacerdote light
do irracionalismo aplicado à estética musical. Suspeito mesmo que, à maneira do
artista alienado e indigente negro, Walter Franco resista a se deixar apanhar
como um artista, no sentido que teria autoridade exaustiva sobre suas obras,
isto é, que seria um produtor desassombrado de objetos artefeitos. Bispo do Rosário dizia que seus mantos não eram arte, mas
coisas sagradas cuja realização tinha a ver com uma missão divina. Para Arthur
Bispo do Rosário não havia espaço para uma explicação, digamos, secular para a
sua tarefa criadora que pressupõe uma pureza inventiva ex nihilo. De certo modo a música de Walter Franco está
comprometida também com a proposição de uma transcendência (seja lá que diabos
isso signifique) e cujo pano de fundo é de um ecumenismo místico votado à
iluminação.
A este
propósito cito o seguinte trecho de uma de suas letras: “(...) saiba de tudo/ fique calada/ me deixe mudo/
seja num canto/ seja no centro/ fique por fora/ fique por dentro/ seja o
avesso/ seja a metade/ sinta o começo/ fique à vontade/ não me pergunte/ não me
responda (...)”. Numa espécie de transposição da noção de não-verbal, deparamos
a tópica da “mente quieta” ou vazia de pensamentos como pressuposto para que a
virtual meditação faculte ao sujeito a perspectiva do autoconhecimento. Essa
tópica se presentifica tanto no emprego do verbo ser (consagrado filosofema) como na escolha do tempo verbal
imperativo afirmativo que rege outros verbos: seja o avesso, seja a
metade, fique à vontade, etc. Outros
verbos usados nos versos da letra apontam para a deriva epistêmica de Walter
Franco que é de corte vagamente zen, por exemplo: “saiba de tudo/ fique calada”; “sinta
o começo”; e, por fim, lançando mão da forma negativa do imperativo, o
compositor canta “não me pergunte/
não me responda”. Com suas acepções
que indicam às vezes a certeza de algo ou de uma realidade, outras, uma ordem
ou sugestão, de resto, o imperativo afirmativo está presente no verso-síntese
“eu quero que este afeto saia já”, misto de divisa, slogan,
anáfora e estribilho, que aflora e se dissipa entre uma faixa e outra ao longo
de todo álbum Ou não.
Outra semelhança entre o músico e o artista
Bispo do Rosário tem relação com o pano de fundo pós-moderno que compartilham. Identificando, a princípio, em Walter Franco, algo
do espírito desse período – no qual, grosso modo, a aposta na racionalidade
vacila fortemente –, não o faço com o intento de censurá-lo ou de coisa
parecida. Muitos críticos afirmam que o modernismo (ou a vanguarda como
sucedâneo e sua utopia) se tornou demasiadamente oficial e, por outro lado, que
a sua reação, isto é, o pós-modernismo, acaba figurando, por consequência,
sempre em nosso imaginário como uma anedota conservadora. Podemos, agora, questionar
a equação redutora representativa do ideal moderno: “desenvolvimento =
progresso”. Nas polêmicas referentes ao tema há uma tendência para relacionar
por ligação direta o pós-moderno ao retrógrado; os termos parecem coincidir. No entanto, o pós-moderno guarda em si a possibilidade
de restaurar o diálogo com o passado, algo que, pelo menos na aparência, havia
sido descartado com o advento das vanguardas do início do século 20 e que, de
resto, estava pressuposto no projeto modernista de construir programaticamente
“a partir do zero”. Uma negatividade radical como teatralidade e plano-piloto.
O que aconteceu a seguir fica bem contextualizado com um pensamento da filósofa
Hannah Arendt: “o substituto ainda tem alguma coisa a ver com aquilo que vai
substituir”. Não obstante as controvérsias entre um lado e outro, o pós-moderno
é legatário do maior valor do projeto moderno, a saber, a liberdade. Mas as
artes, no uso, por assim dizer, extravagante, deste legado, transformaram-no em vulgaridade. O
interesse pela tradição renovada foi ficando à margem do caminho em favor do
virtuosismo técnico e do vício da citação irônica: a saturação das referências.
Com efeito, o álbum Ou não dá
corda a esse valor seminal que, para além das controvérsias entre o moderno e o
pós-moderno, justifica, estética e politicamente, ambos os projetos, ou seja: a
liberdade. Talvez o pós-moderno tenha especializado o conceito de liberdade em
termos de estilo. Por seu turno, o apetite pela
liberdade para a escola modernista tem laivos românticos. Bandeira, por
exemplo, diz num poema que “o lirismo não é libertação”. E essa libertação só
será alcançada através do uso de todos os ritmos “sobretudo os inumeráveis”.
Ou
não
tem estilo a par de uma liberdade informalista. Cada canção do álbum apresenta aquele
conjunto de procedimentos através dos quais um objeto estético consegue
produzir um desvio das normas estatísticas da sua linguagem. Walter Franco
opera em uma faixa expressiva que abole os elementos já automatizados da
linguagem musical. O compositor sabe que esses processos do universo pop não
chamam atenção para si; simplesmente comunicam, levam uma espécie rebaixada de
mensagem ao ouvinte médio. Os elementos automatizados da música pop ocorrem com
probabilidade muito alta, portanto, são redundantes e cosméticos. Walter Franco
experimenta outras chances de informação nova ao instaurar em sua música
signos-limite que, em termos estatísticos, indicam uma baixa taxa de ocorrência
de elementos redundantes. Assim, quanto mais estilo o compositor nos dá a
fruir, mais conscientes ficamos da função poética e do estranhamento contidos
em sua música.
Referências, senhas
irônicas em Ou não: a mosca que, a um
só tempo, serve tanto de ícone, como de
símbolo trocadilhesco, estampada na
capa alva do álbum alude ao clássico dos Beatles, e funciona como paratexto ou
ruído semiótico. Walter Franco fez teatro durante um bom período de sua vida, por
esta razão me aventuro a dizer que quase todas as faixas do álbum figuram como
verdadeiros monólogos teatrais, pois o músico coloca em movimento ou em cena, a
cada interpretação, um protopersonagem; pode-se mesmo comparar suas
performances a materializações de vozes dramáticas.
Algo dos ritmos e da música latino-amaricana subjaz a uma vaga lembrança
dos Rolling Stones na primeira faixa do álbum Ou não, mas, nessa observação, deixo em aberto a possibilidade de
refazê-la em sentido contrário. Talvez o acento forte deva ser creditado à
histórica banda inglesa sobre um pano de fundo sonoro que evoca a cultura
sonora do altiplano. O certo é que causa um grande prazer ouvir as duas coisas
numa tensão singular.
Em favor do que, linhas
acima, defini como o gesto informalista ou intuitivo do compositor (que
permanece o tempo todo rente ao errar do sonho ou de sua lógica), não seria
razoável deixar de anotar que a execução do violão de Walter Franco é
suficiente para os propósitos musicais que procura, na verdade ele não os quer
achar. Ele é menos músico do que Caetano Veloso o é, por exemplo, em Araçá azul, embora Caetano como
instrumentista também deixe a desejar. As harmonias e as melodias de Walter
Franco são simples, por isso, apesar da forte referência aos Beatles – que, a
rigor, não é senão uma citação paródica – já apontada na analogia visual entre
as duas capas, a pegada assumidamente tosca e suja dos Stones acaba por ser mais
eficiente como medida de comparação. A estética do precário assumida por Walter
Franco em Ou não o leva a andar rente
às instâncias afásicas, tanto no que diz respeito à sua performatização vocal,
quando aos recursos eletrônicos e acústicos de que se serve para definir os
arranjos às suas canções. Repetições maníacas de sintagmas, sua interpretação
vagido rente ao gutural, ecos, gravações sobre gravações, reprodutibilidade e
redundância entrópicas que, no extremo, se convertem em imprevisibilidade: “(...) o
raciocínio lento/ o poço [o] pensamento/ o olho [o] orifício/ o passo [o]
precipício/ eu quero que esse teto caia/ eu quero que esse afeto saia, já/ o
vermelho natural/ no rosto e no lençol/ com gosto de água e sal/ misturando o
bem e o mal (...)”;“(...) o rádio o
tédio a canção/ no asfalto no alto falante/ o passo lento (...)”.
Em alguns momentos
Walter Franco parece cantar quase como um sujeito que sofre de paralisia
cerebral cuja dificuldade de fala é uma das sequelas dessa lesão; seu canto se
converte numa sequência de engasgos e as palavras se esfacelam por completo. O
canto de Walter Franco parece atualizar o “abolido bibelô de inanição sonora”
sugerido no verso de Mallarmé. Essa lesão,
enquanto metáfora de uma determinação de linguagem, que recusa qualquer
responsabilidade pelo significado último, se conecta com a acepção segundo a
qual Barthes sustenta que a moral social exige do artista “uma fidelidade aos
conteúdos, enquanto ele só conhece uma fidelidade às formas”. A lição da
“inanição sonora” requer do ouvinte-fruidor a aceitação do fracasso, porque
para Walter Franco, sua música, tal como a capacidade de sonhar, ameaça significar
uma série de coisas, mas, a rigor, não significa.
Anexo
Antes
de escrever esse artigo, fiz uma sondagem bastante informal junto a alguns
músicos e críticos de Porto Alegre com intuito de saber a opinião deles sobre a
contribuição de Walter Franco para a música brasileira. Agradeço a todos pela
gentileza e por cederem seus breves comentários. A seguir reproduzo alguns dos
depoimentos.
[Bebeto Alves, músico] O Walter
Franco foi, com sua proposta de desestrutura, talvez o maior responsável, na
música brasileira, daquele então, e pra todo o sempre, de uma ruptura estética
e formal que tornou possível se pensar em música como um gesto revolucionário,
no sentido contemporâneo da palavra. Mais que Mutantes, num outro sentido, até
por ser um pouco depois, a atitude do WF era uma atitude intelectual,
consciente, que misturava todas as tendências existencialistas pós anos
sessenta, principalmente um “quê” oriental, via budismo, e uma performance
festivaleira inspirada claramente nos tropicalistas. Sem erro, um grande
momento.
[Juarez Fonseca, crítico de música] Assisti pela TV a
estreia do Walter em 1972, cantando a música "Cabeça" no VII Festival
Internacional da Canção, e chegando com ela à final – só não venceu porque o
juri nacional foi destituído. "Ou Não" (1973) e "Revolver"
(75), estes dois principalmente, são, a meu ver, grandes marcas daquela época,
o primeiro totalmente experimental, concretista, o segundo já incorporando o
rock a isso, ambos lançados pela gravadora Continental. Vejo Walter como um
músico à frente de seu tempo, com propostas de vanguarda, inovadoras e
corajosas que acabaram lhe valendo o rótulo de "maldito" e, digamos,
perturbando o prosseguimento de sua carreira. Gosto muito também do terceiro
disco, "Respire Fundo" (1978), já lançado pela CBS e que inclui o
sucesso "Coração Tranquilo", muito menos radical, mais palatável para
a linguagem radiofônica. Mesmo assim, acho que ele ficou marcado pelos
experimentos de vanguarda e seu público sempre foi muito reduzido.
[Marcelo Delacroix,
músico] Na minha adolescência fui arrebatado pela música
"Respire Fundo", espécie de hino “tchup tchura” que tocava
insistentemente nas rádios. O Walter Franco parece ser dessas pessoas que escolhem trilhar um
caminho filosófico espiritual, acima de qualquer pretensão de carreira.
[1] Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 4 de
agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre
outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) No Assoalho Duro (2007), Cair
de Costas (2012), Decupagens Assim
(2012), Oliveira Silveira: obra reunida
(2012) e Empresto do Visitante
(2013). É, por enquanto, editor associado do website WWW.sibila.com.br. Assina o blog: www.poesia-pau.blogspot.com
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