Consciência Negra, Globeleza e homicídio da
juventude: entrevista com Ronald Augusto
Débora Fogliatto
A população negra e parda é historicamente oprimida
no Brasil, sendo excluída nas mais diversas áreas, como saúde e educação. Na
cultura, a situação não é diferente. Desde a elitização do carnaval,
passando pela “mulata” Globeleza sambando nua nas telas da televisão, até o
homicídio da juventude, as pessoas negras são escanteadas e estereotipadas no
imaginário social brasileiro.
É dentro dessa perspectiva que Ronald Augusto,
poeta, compositor e músico, critica os processos que cercam a
representação das pessoas negras na cultura e na arte brasileira. “Acho que o
Carnaval, como é atualmente, está perdendo a condição originária dele, que era
uma manifestação das comunidades negras. Agora ficou muito grande
economicamente, virou uma espécie de extensão daquela cenografia da Rede
Globo”, ponderou, sobre a festa nacional mais famosa do país.
O poeta também falou sobre as formas como a
população negra é representada na televisão, especialmente nas telenovelas,
mencionando o seriado “Sexo e as Nega”, de Miguel Falabella, que tem sido
criticada especialmente por grupos feministas e ligados ao movimento de
mulheres negras, por representá-las de forma estereotipada e hipersexualizada.
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Sul21 — As pessoas negras e pardas são metade da
população brasileira, mas continuam excluídas de muitos processos. De que forma
isso se dá em relação à produção cultural e artística atual?
Ronald Augusto — Eu acho que elas ainda não são representadas
suficientemente bem, inclusive porque o governo até abriu editais para produção
de artistas negros. Não se pode negar que existe uma visibilidade, uma produção
ligada à cultura popular, como o samba, o pagode. Mas o problema é que é um
espaço aberto ou oferecido pelo mercado, com as suas determinações
preconceituosas que não dão conta de uma maior diversidade e aprofundamento
dessa contribuição decisiva da cultura negra para a cultura brasileira. Tudo fica
ainda em um nível muito superficial, trata-se daquele samba pra inglês ver.
Ainda precisamos de um esforço para que essa diversidade que é muito ampla
apareça, sim, com todo o seu vigor.
Sul21 – Eu pensava exatamente nisso que tu
falaste, do “samba pra inglês ver”. Muito do que se considera cultura
brasileira é na verdade a cultura afrobrasileira, como o Carnaval, o samba.
Mesmo assim, há racismo. Como tu vês o fato de os brancos terem incorporado
isso e tornado comercial? Isso é algo bom, natural da miscigenação, ou é
problemático?
Ronald Augusto – Escrevi um texto falando sobre isso, sobre o
Carnaval brasileiro, mas sem considerar aquele sentido clássico de festa
profana como contrapeso aos ritos sagrados. O Carnaval como negócio. O Carnaval
brasileiro ficou padronizado, com a cara do Carnaval espetáculo de escola de
samba do Rio de Janeiro e virou um grande negócio. E quando isso acontece,
quando é considerado algo sério, quem toma conta disso? Os brancos. No Carnaval
carioca a maioria dos presidentes das escolas de samba são todos brancos, acho
isso terrível. Não que um branco não possa fazer parte disso de um ponto de
vista propositivo, é claro que pode. Faz parte do desejo estético de qualquer
pessoa se envolver em uma manifestação artística. Mas acho que o Carnaval, como
é atualmente, está perdendo a condição originária dele, que era uma
manifestação das comunidades negras. Agora ficou muito grande economicamente,
virou uma espécie de extensão daquela cenografia da Rede Globo. Aquilo ali
parece espetáculo da Rede Globo. Acho também que as pessoas ligadas a esse
acontecimento, principalmente aquelas conhecedoras da tradição, têm
de ficar atentas a isso. Mas as forças do mercado são muito grandes, então
mesmo que muitos negros estejam envolvidos (se bem que investidos de uma
posição subalterna), preferem apostar nesta situação do que deixar de
participar.
Sul21 – Agora que tu falaste em Globo, muito
se problematiza também dentro do feminismo a figura da Globeleza, que sempre é
uma mulher mulata ou negra, sambando quase nua na televisão. Como tu vês essa
figura?
Ronald Augusto – A figura da mulata Globeleza é exposta sem o menor
pudor. Dificilmente vemos na TV uma mulher branca nua sambando na frente das
câmeras, na sala de estar do brasileiro médio – ainda que o corpo da mulher
(seja branca ou negra) continue sendo usado como fetiche capitalista. Mas por
que uma mulher negra pode? Há diferenças nessa expropriação do prazer e do
corpo. Porque a sexualidade do negro é algo que está à disposição de todos,
ainda é um resquício do corpo do negro como sendo a posse do sinhozinho e da
sinhazinha da Casa-Grande. É como se o corpo negro fosse algo da ordem do
animal, não do humano. Então pode aparecer nu, é uma peça, um exemplar do
zoológico do homem branco, acho terrível.
Sul21 – Dentro desse aspecto do corpo das
pessoas negras, eu vi que tu escreveste sobre o seriado O Sexo e as
Nega. Muitas mulheres negras reclamaram do seriado por achar que ele
colabora para a hipersexualização dos corpos, inclusive uma das primeiras cenas
era uma mulher negra transando no chão, isso tudo foi muito criticado. Como tu
encaras a representação dos negros e das negras nesse contexto?
Ronald Augusto – Eu li um texto muito legal sobre esse seriado onde
o autor analisa e nota que todas as situações de crise e tensão que surgem
nessa narrativa se resolvem por meio da troca sexual ou dos serviços sexuais. Então tem uma cena em que
uma das mulheres sofre uma agressão racista de um segurança negro de uma loja e
depois o cara vai pedir desculpas e eles acabam transando: clichê do sexo fácil
e casual atribuído à libido dos negros. E o mesmo acontece com um homem negro e
uma mulher branca, a tensão se resolve por meio do sexo. Isso é reflexo da
mentalidade do (Miguel) Falabella (autor e criador),
que é um sinhozinho branco. Ele parece acreditar que a gente vive numa sociedade que só porque
se admite a mistura não tem o preconceito introjetado. A miscigenação não dá
conta da resolução dos conflitos étnicos, a miscigenação é, de resto, uma
extensão do primeiro estupro do senhor na escrava. A mistura brasileira começou
com o estupro do português com a índia e a africana. Claro que não sou contra o
casamento inter-racial, não é nada disso. Mas sempre temos que estar atentos a
isso, a essa miscigenação de fachada, porque a democracia racial é uma falácia,
uma mentira.
Sul21 – Isso é o que eu ia te perguntar a
seguir, sobre o Falabella, que é um homem branco escrevendo sobre mulheres
negras. Isso afeta o texto, faz com que a representação seja distorcida?
Ronald Augusto – Isso que não me agradou quando li o texto da Elisa
Lucinda, porque ela disse que ele tem a “sensibilidade da comunidade”. Ele até
pode ter um feeling para isso, mas o fato de estar próximo da
comunidade não impede que ele seja preconceituoso tanto em relação à mulher
quanto aos negros. A gente sabe que mesmo dentro da comunidade tem o
preconceito racial. A gente sabe que é dentro de um matiz de cor que vai do
mais claro para o mais escuro que se fundam uma série de vantagens e
desvantagens, quem é mais claro se sente superior e é tratado como. Como diz o
Muniz Sodré, a cor da pele é um patrimônio também no Brasil, é um patrimônio
para o bem quando é para o mais claro. O fato de o Falabella ser da comunidade
ou simpatizar com a comunidade não quer dizer que não expresse seus
preconceitos.
Sul21 – Na televisão em geral, as pessoas
negras sempre foram apresentadas como a empregada doméstica ou a menina da
favela, o cara pobre. Tu achas que isso tem melhorado ou as pessoas negras
continuam estereotipadas na televisão brasileira?
Ronald Augusto – Eu acho que devagarzinho tem mudado, mas temos
esse exemplo do Sexo e as Nega, que supostamente era uma produção
televisiva com outra visão dos negros, mas se revelou uma baita duma
falcatrua porque repete os mesmos padrões e coloca o negro no mesmo lugar. Para
que aconteça alguma mudança, é preciso que lutemos para fortalecer o surgimento
de alguns roteiristas negros com consciência crítica em relação a isso. Porque
também existem pessoas negras que acham que não há preconceito, esse meme do
Morgan Freeman de que não podemos falar em racismo, de que o importante seria
darmos força a um dia da consciência humana, de voltarmos a valorizar o
universal, etc, isso é uma bobagem. Consciência humana universal é consciência
branca. Isso é uma ideia fraca de discussão do preconceito racial, pois parte da negação da realidade brutal do
racismo, temos que discutir tudo francamente. É preciso existir roteiristas e
diretores negros. O diretor Joel Zito Araújo fez um documentário muito legal
sobre a presença do negro na televisão brasileira (A Negação do Brasil,
2000, 90min) e é um dos diretores preocupados com isso.
O que mais dificulta um debate aprofundado sobre o preconceito racial é
que ele está naturalizado, está dentro da estrutura das relações, os negros
também introjetaram isso. Muitos negros assistem esse seriado e pensam: “pelo
menos a gente está na vitrine”, mas estamos do mesmo jeito, de uma maneira
subalterna. Ali ainda é o corpo que fala mais alto, não é o discurso, nem o
intelecto. Como se essa capacidade nos fosse eternamente negada, a reflexão do
negro. E isso é uma tremenda injustiça porque um dos maiores escritores
brasileiros, Machado de Assis, era negro. Ficar reforçando só o aspecto da
ginga é terrível. Essa jogada do Daniel Alves (lateral-direito do Barcelona,
jogador da Seleção Brasileira) de ter comido a banana, por exemplo,
não é a resposta. A resposta é denunciar e exigir que se cumpra a lei que
criminaliza o racismo; e acabou.
Sul21 – Isso gerou aquela campanha do Somos
Todos Macacos, que foi terrível e teve muitos brancos opinando sobre o que era
certo e errado.
Ronald Augusto – Quanto a essa piada de mau gosto intitulada Somos
Todos Macacos, devo dizer eu fiquei muito feliz com uma coisa: desde o início eu
disse que parecia slogan publicitário, mas algumas pessoas começaram a dar
conotação política à máxima. E mais tarde se revelou que era isso mesmo, um
slogan totalmente vazio. Fiquei muito feliz de ter me antecipado a esse festejo
idiota. É justamente isso, a questão racial termina em piada, brincadeira,
humor. Isso é muito sério. Atualmente o que tem me deixado mais bravo são esses
homicídios dos jovens negros. Inclusive até a Anistia Internacional lançou
uma campanha, chamada “Jovem Negro
Vivo“. Esse é o maior exemplo de que o Brasil é um país
violentamente racista. As instituições públicas de segurança continuam não só
sendo racistas, mas praticando extermínio. As polícias e milícias de extermínio
se confundem. Claro que os negros estão dentro de um processo de violência e
marginalização, há resíduos históricos e sociais envolvidos nisso tudo. Mas mesmo
que muitos sejam criminosos não é dessa maneira que se resolve, isto é, praticando
a pena capital de forma velada. Oficialmente não há no Brasil a pena de morte,
mas na prática há, sim. Isso para mim é muito triste. Alguém afirmou, não me
lembro onde, que enquanto houver esse processo de assassinatos de jovens negros
que não há razão para um Dia da
Consciência Negra. Avançamos um pouco, mas tem muito para avançar.
Sul21 – Então tu achas que datas como essa
cumprem seu papel para que se tenha avanços de direitos?
Ronald Augusto – Tem que servir como instrumento de protesto e
reflexão. Essas datas são importantes, essa é uma data criada pelo poeta
Oliveira Silveira, que além de ser poeta foi um grande militante negro. Acho
que é uma grande vitória e essa questão de ter se tornado um feriado em alguns
estados é importante. Aqui em Porto Alegre não é ainda, mas ao menos temos essa
Semana da Consciência Negra e seria importante que o 20 de novembro fosse
transformado em dia feriado aqui também. Simbolicamente seria muito importante.
Sul21 – Muitas das comemorações são ligadas à
cultura, dança, música, arte.
Ronald Augusto – Tudo isso tem que estar na arena dos debates, das
discussões e no gesto de afirmação. É muito legal e acho que sempre é bom
estimular encontros onde haja o discurso do negro, não só no sentido estético,
mas também o discurso argumentativo dos negros, a inteligência dos negros. Temos
muitos intelectuais que não são conhecidos. O geógrafo Milton Santos, por
exemplo. No século 19, no Rio de Janeiro viveu e trabalhou o André Rebouças,
que foi um grande engenheiro negro, mas a maioria das pessoas nem sabe que era
negro. A mesma coisa acontece com o poeta Cruz e Sousa, de Santa Catarina,
considerado um dos grandes criadores do simbolismo mundial. Tem muita gente que
a gente precisa revelar, que as pessoas precisam saber que eram negros.
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