Sermões,
a pregação sem medida de Nuno Ramos
Ronald Augusto[1]
No que diz respeito aos
processos construtivo e formal, no sentido de uma determinação compositiva, Sermões parece não ter um desígnio
preciso. Tudo vai ao modo do acaso, como se o autor levasse um encontrão fortuito
e desse episódio surgisse sua pregação sem medida. A forma é insignificante e
meramente contingente, isto é, poderia ser diferente, o impulso poderia vir de
qualquer lado. Ainda que pareça uma ideia fora do lugar – e para provar o
contrário julgo ser oportuno apelar ao domínio das artes visuais de onde vem
Nuno Ramos –, eu diria que sua poesia é uma tentativa não muito bem sucedida de
transposição do informalismo pictórico[2]
para o campo da criação verbal.
Com efeito, em Sermões há uma série de indícios que se
ligam a princípios do movimento do informalismo na pintura, por exemplo, a
aposta no uso imprevisto das matérias que resulta no apetite pela mancha e pelo
errático; a aleatoriedade do gesto como fetiche estético, bem como a angústia com
relação a qualquer forma de controle, na medida em que isso está na base da
recusa à concepção tradicional de pintura; o informalismo de Sermões também emula a resistência daquele
movimento à obra conclusa (com sentido
formal mais ou manos claro) e é por essa razão que o poema de Nuno Ramos se
revela como um grande rascunho ou esboço pretensioso. Retardatário do clichê da
“obra aberta”, e justamente porque se aproveita de tal noção na sua faixa de
significação mais pop ou fraca, isto é, a do relativismo do juízo estético,
Nuno Ramos acena à preguiça do leitor com a possibilidade de que o livro seja lido
livremente, afinal de contas, seu sermonário é meio maluco beleza mesmo.
Assim como a
experiência pictórica do informalismo envelheceu abruptamente devido à
pretensão de novidade, pois abdicou de formas significantes em vista de construir
signos, Sermões, em função dessa
marca de origem, antes tropeça do que pisa firmemente nessa via mal
pavimentada. Sua escrita repleta de sintagmas que se conjugam parcamente –
modelo de parataxe tout court – não
consegue oferecer um sentido (uma direção) à relativa autonomia interpretativa
do leitor.
Abandono
meu
baço
canta a moto na calçada.
Que
foi, quem fui
que
fiz eu do que me deram, v
aleu?
Questões graves.
Mas
pronuncio, agora e até o fim
o
longo sermão da luz meu
pâncreas canta – autora
confusa,
borrando e fumando
o
fundo e a figura
poderias
por um só
segundo,
s
egundinho,
apagar-te
para
que eu enxergue melhor o que vai dentro?
Alguém levantará a
questão: “mas o crítico extrai a passagem do contexto, portanto não é possível avaliar
se o que ele afirma é verdade”. Respondo a esse objetor com uma lição do poeta Hans Magnus Enzensberger, lição pensada,
por via da metáfora, como solução por contato ao problema de como distinguir o
bom poema do mau poema, ele afirma o seguinte: qualquer um consegue perceber ao
primeiro gole se o conteúdo de um barril é de vinho ou de vinagre. Esses breves
goles, crítica por meio de sinédoques, que apresento ao leitor visam preparar
seu ânimo para o livro que está no mercado para ser comprado, lido-fruído e
avaliado. Não pretendo frear o eventual desejo do leitor pela obra, mas fique
registrado que não foi por falta de aviso. Contudo, pode ser que o leitor flerte com a espontaneidade,
o automatismo; com a crença de que ideias preconcebidas sempre causam prejuízo.
A experiência da escritura que se faz em fluxo e que, por não ser nem prosa nem
verso, já está – sabe-se lá porque razão – suficientemente justificada é
atraente ao leitor contemporâneo. Da justaposição de acontecimentos anotados de
maneira maníaca se segue a irrupção da ideia; é o que propõe Nuno Ramos com Sermões. Mas sua forma insignificante,
ideia sem desenho, acaba fazendo da obra o momento superestimado em que o
artista se autoengana (dobrando-se profundamente sobre si mesmo) e se dá em
espetáculo.
Nem a
noção de acaso – prefigurada no início desse texto –, mas desde o ponto de
vista mallarmaico, pode ser mencionada em defesa de Nuno Ramos. Pois ao
contrário da concepção do simbolista francês, cujo ponto de vista sobre o jogo
artístico não apenas supõe a participação do acaso, mas, além disso, aspira ao
seu controle em função dos limites da linguagem, na perspectiva de Nuno Ramos,
seu Sermões – sendo mais um lance de
sua atividade artística ambidestra – não poderia não se submeter ao acaso ou,
ao menos, deveria nos fazer cientes de seu fervor por ele. Em outras palavras,
o indeterminado que arrasta esse longo poema a uma espécie de vertigem, onde parece
que tudo está sendo dito, se justifica pela via de uma ideia circular segundo a
qual o poema é maluco porque a coisa representada causa um efeito maluco no
poeta-artista. Felizmente não há como comprovar se a coisa (que dá corda ao
poema) é maluca em si mesma.
Como significar tudo ou
a totalidade dos acontecimentos sob a mira do poema, do sexo safado do artista provecto
à pintura clássica, passando por samambaias e gozo e conas (e Sermões foi escrito em vista disso), por
meio de uma linguagem tão frouxa, tão inessencial? Simples, usando mais uma vez
a enumeração serial de imagens como pau pra toda obra, mas em prejuízo de todos
os ritmos, “sobretudo os inumeráveis”, tão importantes para a realização de
verso livre de qualidade, como percebera Manuel Bandeira. Então, o que nos dá
Nuno Ramos?
Por que meu
Deus ou t
ótem seria o som
contínuo, o guizo
sem sentido
o cosmo falso,
insaciável
das gargantas
repetindo
cifras, expelindo
máximas,
números? Se há um
útero onde cabem
mãos
ficção, poema
se há um peito e um
a bunda e o ganido
e o conforto
dissipado, óxido
puro?
Com relação a um
movimento demasiadamente expansivo, atinente à representação de um campo
semântico com que o leitor tem de se haver, Nuno Ramos é exitoso, mas apenas em
uma acepção: se aparentemente ele faz de tudo com a linguagem, já no aspecto de
formas significantes ele, no entanto, não faz o suficiente. Isto é, sendo mais
ligado ao gesticulatório do que ao desenho do gesto, Sermões é parco de significados e perdulário em sua dispersão, ou
melhor, a mobilidade do texto simula profundidades. Por meio de uma retórica da emoção erótica e
do apetite estético, Nuno Ramos se dobra sobre a escrita com a vontade de que essa
atividade alcance a condição de um objeto de linguagem capaz de se comportar,
por assim dizer, como uma tradução simultânea de determinados estados
perceptuais e pulsões íntimas. Mas isso não se cumpre, a afetação artística ou a
simulação indecorosa de confissão e poesia visam imantar de interesse algo que não
tem tanto interesse a não ser de um ponto de vista dos prazeres obtidos com
pornografemas. Por essa
razão, durante minha leitura me senti como se vagasse por cômodos e quartos de casa alheia; como se eu inspecionasse o jornal
íntimo de alguém com
quem me fosse
vedado ter toda e qualquer efetiva interlocução.
Mesmo os elementos obscenos –
evocados tanto na capa, quanto dispersados no texto – se têm a ver com a determinação do artista em fazer um
mergulho nos âmbitos mais secretos do desejo humano,
visando a uma compreensão mais desanuviada relativamente
àquilo que a vida normal e cotidiana entende como chocante, repugnante e repreensível, mesmo
isso não dá suficiente consistência ao livro. A aparição de tais elementos eventualmente censuráveis – caprichosas diluições da
imagética de Sexus, de Henry Miller –, operaria ainda um ferimento na superfície alva da página? Reificação perversa (perversus
= posto às avessas) de eros.
O foco do sujeito narcísico é se dizer ad
nauseam, ainda que ele venha a se dizer mal, ou seja, imperitamente. A
toada costumeira: fazer de tudo e fazer de nada com o significado. Coisa que
calha muito bem como uma predicação do clichê.
Diante
dessa perda
não
seria correto morrerem
alegremente
cães e macacos?
De
que valem
fungos,
cogumelos, picap
aus,
bactérias
se
não há conas para mim?
Esse fragmento resume
os problemas de Sermões, por exemplo,
há enumeração excessiva, justaposição de quadros mnemônicos, indecisão
entre os léxicos chulo e parnasiano referentes à genitália (“cona”; “caralho”),
e
cortes de versos em pontos aleatórios (a rigor são linhas de prosa fraturada)
que talvez sirvam apenas para dar um solavanco no leitor. A propósito disso
destaquei alguns parágrafos acima uma estrofe que contém a seguinte passagem: “Deus ou t/ ótem seria o som...”. O que
Nuno Ramos pretende com esse tipo de efeito? Em vários momentos do livro há
fraturas análogas. Contudo, confesso que, em termos construtivos, não consegui
entender qual a sua função. O curioso é que na superfície desse cacoete pode-se
notar uma pretensão poética, mas isso parece
contraditório, pois para Nuno Ramos atinar para questões do verso livre ou
tradicional, seus limites e virtudes, é coisa de menor importância. Sermões pretende ser poético – inclusive
no uso de citações ou expropriações de filósofos e escritores –, mas sem passar
pela poesia, isto é, sem dar o devido crédito a eventos constitutivos de
semelhante arranjo com a linguagem. Nuno Ramos quer passar diretamente aos
efeitos causados pela poesia, efeitos cuja verificação é sempre muito árdua. O
verso não é um mero acidente em direção à poesia. Da mesma forma a
tortografia cummingsiana (como se fosse mais um ponto final imposto ao
verso) não é qualquer coisa, nem coisa qualquer em
que o poeta tropeça distraído com sua genialidade. O verso, livre ou não, o
fragmento reiterado, implicam senso métrico, consciência acentual, pausas,
rapidez e demora.
Infelizmente
é na parte final de Sermões que Nuno
Ramos, por assim dizer, quase assume a prosa que passa o tempo todo, ao longo
das cerca de duzentas páginas do livro, sendo imperitamente dissimulada. Mas já
é tarde, o estrago foi consumado. Sermões
não melhora nem piora por causa disso, apenas confere ao ato criativo do artista-poeta
uma intenção menos dolosa do que culposa, na medida em que não faculta ao
leitor nem uma coisa nem outra: a ida inacabada de algo que nem chega a ser
poema até uma prosa levada meio a contragosto.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico
de poesia. É autor de, entre outros, Confissões
Aplicadas (2004), Cair de Costas
(2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com
[2] O
informalismo está implicado na Action Painting que qualifica tanto uma técnica
pictórica, como um movimento artístico relacionado ao Expressionismo Abstrato,
desenvolvido desde os inícios da década de 1940 nos Estados Unidos e na Europa.
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