Sabor da crítica vadia: Decupagens Assim
Cândido
Rolim[1]
Há críticos e artistas que evitam comentar sobre seu tempo, quem
sabe, aguardando a estação passar para, na carona de alguma aprovação unânime,
emitir suas impressões com base em uma opinião digna de figurar no elenco dos
juízos “confiáveis”. É na contracorrente desses esforços débeis de consagração
que atulham a nebulosa literária que alguns pensadores, dentre eles o
poeta-crítico Ronald Augusto, atentos à “fruição do indeterminado do discurso
literário”, vão revolvendo tópicos e questões supostamente “consumados”.
Ronald é um poeta que periodicamente realiza cursos cuja matéria
prima é a leitura e a confecção de objetos verbais (textos). Portanto, convive
à exaustão com os impasses da linguagem poética e também com os logros, as
imposturas e os embustes realizados por nomes e obras preservados pela política
cultural do entorno. Não assusta que apareça em seus artigos, aqui acolá, com
virilidade nietzschiana até, detonando os ruídos solenizantes da literatura travestida
de informação e seus manjados praticantes.
Mas, abstraídos os confrontos, as perguntas que faz,
invariavelmente, denunciam a gana de extrair ou aproximar-se de uma razão
concreta, vital, táctil, nesses processos tão limítrofes quanto
interrelacionados – poesia e prosa, pintura e música, etc. – sempre em busca de
uma trama, ilusória que seja, que não se renda ao primeiro esforço-leitura.
Essa é, portanto, a imagem, ao mesmo tempo aguerrida e meticulosa, recorrente
em Decupagens assim, que traduzo como
índice de disposição, agudeza, cautela, rigor, paciência e interesse pelo que
está por baixo da superfície crespa da linguagem e, afinal, por trás de cada
processo estético: a do “leitor de lápis em punho”.
A meticulosidade fica por conta do rigor vadio com que o crítico
saboreia os limites da experiência estética contemporânea e de períodos mal
dissolvidos (o alto modernismo, por exemplo). Esse exercício agudo de
interlocução o autor deixa entrever através de figuras que, longe de comporem
um quadro de sufocante veneração (Bandeira, Borges, Brossa, Barthes e outros)
rendem ainda uma dialógica aproveitável.
Afinal, é por conta mesmo dessa iniciativa de entreabrir a
rarefeita malha intersemiótica da cultura que nos é permitido fruir de objetos
estéticos deixados ao longo do percurso. Essa, digamos, anti-política
literária, que fique claro, só provisoriamente pretende colocar as coisas em um
devido lugar (mas que lugar? – Seria, afinal, a pergunta). Sem dúvida, o lugar
desde onde é dado à arte, e à literatura em especial, desencadear seus sentidos
incompletos, suas contra-dicções.
Assim, antes de tomar pé na margem móvel de sua provocante
diversidade, tomo os presentes recortes como um raro convite ao pensamento, à
“vadia fruição do pensamento-arte”, experiência que nos permite tocar os
alvéolos da tradição literária sem pregnância nem dogmatismos. E talvez seja
essa indisciplinada deriva crítica que melhor destaque as tensões envolvidas no
objeto estético, o qual jamais descarta, de imediato, uma interferência
criativa (entre promíscua e atenciosa) que perturbe seus limites
interpretativos nem tampouco negligencie o lance racional desencadeador de um
início de intriga virtualmente inesgotável.
Afinal, é desde essa zona crítica que o autor se mostra como um
dos poucos que, atualmente, exercitam com consequente inquietação, o processo
de releitura de obras e autores que, sufocados por mistificações simbólicas ou
mal-intencionados silêncios, reivindicam ainda uma interessante e interessada mirada.
Atento a isso e a quase tudo que gravita em torno da alta e da baixa cultura,
Ronald Augusto dá conta, com sobras, desse trânsito criativo.
[1]
Cândido
Rolim,
poeta, crítico, autor de, entre outros, Pedra
Habitada (2002), Exemplos Alados
(1998), Fragma (2006) e Camisa Qual (2008).
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