Typographo: um outro existe
Ronald Augusto[1]
Talvez o eixo do novo
livro de poemas de Ricardo Silvestrin, Typographo
(Patuá Editora, 2016), seja o poema “Tu”. Ao redor dessa peça gravita um feixe
de sentido que, não obstante aflorar e se dissipar em outros poemas ao longo da
obra, é justamente nesse poema que tal área semântica passa a assumir um
caráter mais nítido. Em outras palavras, em “Tu” o poeta aposta em duas
maneiras de desautomatização da vida da pessoa, uma ligada à reversão do
automatismo psíquico e outra vinculada à crise de uma expectativa social que
tenta moldar seus desejos. Grosso modo e até onde consigo ver, Typographo se concentra nesse ideograma
interpretativo e provisório que proponho ao leitor.
Nesta perspectiva, em
“Tu”, poema parcelado em 18 movimentos (cada um deles constitui uma estrofe),
Silvestrin exercita uma espécie de arte da desilusão. Ou melhor, em alguma
medida o poeta se compromete com a ideia de que a criação artística surge à
superfície de nossa percepção tanto para nos desiludir acerca de nossas
filosofias, quanto para interpor uma suspensão no movimento inercial de nossas
vidas. Soa pretensioso predicar isso de tal gesto criativo? E se isso for
verdade, um compromisso dessa ordem assumido por ele não se revelaria
demasiado? Pode ser, só que não.
Uma digressão. Em Typographo a poesia de Ricardo
Silvestrin se revela mais interessada e resiliente. Mais interessada nas
revoluções da vida. Esse filosofema, vida,
percorre o livro todo à maneira de um tom (sentido musical); limite
disciplinador. Entretanto, a categoria de revolução
de que me sirvo é emprestada à rubrica astronômica, ou seja, o movimento –
metáfora do desejo – orbital de um corpo (celeste, se
se quiser) ao redor de outro ou de si mesmo; o tempo agindo sobre nossos gestos
e ideias enquanto nos estranhamos e nos familiarizamos reciprocamente no correr
da vida que nem um moinho que se volta sobre si mesmo.
O fato é que a
interlocução proposta pelo poema “Tu” pressupõe um leitor (também) interessado
em, ocasionalmente, erguer os olhos dos versos para, num lance de pensamento, se
reconhecer nessa persona-tu que agora
tem diante/distante de si em uma sequência de 18 instantâneos ou, ainda, a
reconhecer que o poeta lhe fala ao pé do ouvido, mas em via dupla, isto é, como
se Silvestrin murmurasse também a si próprio esses piparotes, essas cláusulas
em que a “cura para a incerteza” é suspensa. Alguns versos:
[tu]
esperas que te vejam na multidão
te
pesquem no tanque de carpas
te
levem pra casa te salvem do vazio
(...)
...mas só quem sabe de ti
nesta
manhã são os anúncios da caixa de spam
Em “Outro”, poema em que
se percebe mais uma vez o tu feito um
personagem implícito, encontramos a seguinte formulação: “...só quando [alguém]
desiste/ de dizer a si mesmo,/ um outro existe”. Escapar ao círculo de giz do
solilóquio, supõe o aparecimento de um estado discursivo que desborde da
convenção e do controle, isto é, para que o sujeito reconheça no outro o desejo
de ser singular que lhe é irredutível, é necessário às vezes dar sentido e
tensão ao silêncio. O outro se projetará sobre o silêncio determinado do poeta:
a música calada através da qual o leitor se reconhece. Se Ricardo Silvestrin
não se sentisse implicado nas imposturas intersubjetivas – sobre as quais
repousa o mundo objetivo – que ele denuncia e recria, seja nesse, seja em
outros poemas de Typographo, então
ele não seria o grande poeta que é.
Quando me referi linhas
acima à poesia de Silvestrin como sendo interessada e resiliente, fiz isso na
tentativa evocar um dos seus traços essenciais, a saber, sua profunda
identificação com o modernismo. Ricardo Silvestrin, já lavado e escovado de
toda utopia simplista e proselitista, não desdenha, entretanto, a possibilidade
de transformação revolucionária na e pela arte; em boa medida o impulso
permanece bastante dissimulado – pois ainda significa algo não ferir a
autonomia estética –, mas a coisa está ali, obliquamente risonha, às vezes encapsulada
em um haikai, outras vezes incrustada na rima aparentemente inofensiva; está ali,
vigiando, de olhos semicerrados, porém acesos. Cedo ou tarde “a canção tem que
acabar”, sabemos disso, mas para Ricardo Silvestrin isso só pode acontecer
depois que a ignorância e a estupidez passarem dessa para melhor. Por outro
lado, essa harmonia essencial com o modernismo – lato sensu –, tem relação também com a disposição poética de
Silvestrin de não sucumbir acriticamente ao figurino pós-moderno, isto é, o
cinismo, o virtuosismo regressivo e a reificação intelectual que são o sal e a
fachada de boa parte da produção poética do nosso tempo.
Contudo, o que conta
mesmo é a persona-tu que Silvestrin
põe em cena em seu drama não ortodoxo. A interlocução valiosa que instaura um
mal-estar. A admoestação de um sujeito lírico que, à contrapelo do rumor tanto
das transações financeiras, como das redes sociais, e enquanto avisa ao tu “estás agora na cadeira dura/ no
escritório da empresa/ mais uma vez pela última vez”, pretende com isso
desentranhar da parcialidade de um cogito,
a necessidade de um cogitamus.
[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blogspot.com e
escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/
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