Leitura como trabalho
Ronald
Augusto[1]
Há muito tempo minhas
leituras deixaram de ser desinteressadas. A leitura de prazer quase acabou para
mim. Agora o que anda sempre ao alcance da minha mão são obras de filosofia com
que preciso me haver sem grandes alternativas, inclusive porque estou cursando
licenciatura nessa área. Ao longo de 2016 precisei ler, por exemplo, Hegel
(capítulos da Fenomenologia do Espírito),
Axel Honneth (Luta por reconhecimento,
quase todo) e, desgraçadamente, fui obrigado a retornar à Crítica da Razão Pura de Kant. Também voltei a ler Hannah Arendt, o
que foi um alívio. Grande filósofa.
Por outro lado, devido a
um curso de poesia que ministrei recentemente em Porto Alegre, retomei a
leitura de quatro poetas de que gosto bastante: Mallarmé, Joan Brossa, Orides
Fontela e Sousândrade. Eles estão reunidos sob a metáfora das vozes poéticas
que colocam em suspeição o real de que somos filhos e reprodutores.
Por
diversas vias o curso tratava (e trata) da figura ou do papel do leitor nessa condição de
intérprete e executante de uma partitura poética. No prólogo a Don Quijote Cervantes
se refere ao executante de sua obra como um “desocupado lector”. Com esse expediente o narrador coloca o leitor no centro da história. O qualificativo,
“desocupado”, denuncia, em tom metalinguístico, o estatuto ético-estético a que
está submetido o fruidor desse texto literário, é mesmo uma espécie de chave
léxica para uma compreensão provisória da obra. Entra-se no âmbito da
leitura-interpretação pela vereda da errância e da vadiação, trata-se de
valorizar a leitura desinteressada, leitura de prazer. Grosso modo, esse leitor
não se acha imbuído de um desejo de ilustração. Evoca a metáfora do leitor na
rede, “este objeto da preguiça”, e não do leitor de lápis em punho, discípulo
aplicado, obediente.
Ao
contrário do que se imagina, as portas do poema aparentemente impenetrável
estão sempre abertas. Mas só o desocupado
lector sabe disso. O leitor obediente, com o objetivo de superestimar seus
esforços, encarece o suposto hermetismo do texto. Com efeito, há poemas que, a
par de sua relativa incomunicabilidade, atormentam a sensibilidade do leitor. Esses
poemas causam tal efeito porque são menos aderentes a uma vocação mimética ou
referencial. De maneira geral, os poemas desta vertente são entendidos como
peças mal resolvidas e/ou herméticas. Na realidade, poemas com tais
características indicam apenas uma forma de representação do signo
estético-literário. Representam uma sua dimensão ou possibilidade. As
linguagens às vezes se apresentam mais ou menos opacas. A opacidade mais
radical transmite uma informação estética diferente e que é específica a esta
condição (ou tensão) da linguagem, isto é, trata-se de um trobar clus em
relação a um trobar, por assim dizer, mais aberto à esperança do
leitor.
Se essa
pequena distinção não for levada em consideração, então a poesia do Mallarmé
de Un Coup de Dés (1897) poderá ser considerada de
menor importância, por exemplo, em relação à poesia de Morte e Vida Severina (1967) de João Cabral de Melo Neto.
Entretanto, nenhum desses modos discursivos é superior/inferior ao outro.
Apenas nos deparamos frente a duas tendências de agenciamento da função
estética da linguagem. Cada encontro será dedicado a um desses nomes. O curso é
um convite direcionado ao leitor (interessado ou desinteressado) disposto a
descobrir a beleza do (aparentemente) difícil.
Nesse
curso pretendi apresentar e debater as condições compositivas dessa forma mais
fechada de linguagem através da fruição e análise de poemas e experimentos
não-verbais dos poetas citados. As obras apresentadas (sirvam aqui de sugestão
de leitura ao internauta interessado ou curioso) foram as seguintes: Mallarmé – Editora Perspectiva (org. e
tradução: Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos); ReVisão de Sousândrade – Editora Nova Fronteira (org. Augusto e
Haroldo de Campos); Trevo (1969-1980) –
Orides Fontela. Editora Claro Enigma, 1988; Poesia
Vista – Joan Brossa (seleção e tradução Vanderley Mendonça). Ateliê
Editorial/Amauta Editorial, 2005.
Um
abraço e boa leitura, meu igual.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico,
letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair
de Costas (2012), Decupagens Assim (2012),
Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/
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