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Vagar em Macau com vagar

Vagar em Macau com vagar
Ronald Augusto[1]


Avanço, saltando por entre escolhos cotidianos – o Texas-tipo, a garrafa pet, a semanária –, por dentro dos poemas de Vagar em Macau de José Antônio Silva. A cidade e o tempo sucateiam os mitos retrógrados da poesia. Noturno/diurno do Tietê e de outros rios que varam cidades e seus muros. Os signos, os símbolos do triunfo e da derrocada sempre presentes na próxima esquina – no próximo virar de página –, avassaladores. Mas, por outro lado, a fruição do olhar em travelling escrutinando o transitório das megacidades que crescem e se anulam enquanto devoram adjacências e nossas entranhas. Os poemas de Vagar em Macau batem sola no asfalto da cultura e da sociedade, pavimento que, entretanto, não alcança desgastar o sujeito duro e bom, misto de cancionista e rapsodo, que os entoa aos quatro cantos de nossos transes geográficos.
Um excurso sobre “Quatro mil mortes morridas”, um poema exemplar revisitado: o conhecimento satisfatório, sem afetação, do metro e da rima. O cabralino de quem atravessou o pernambucano por dentro, deglutindo suas vísceras e que, portanto, é capaz de recriá-lo ao invés de emulá-lo servilmente. Cabral é uma pedra no meio do caminho de qualquer poeta. Não faz bem evitá-lo com a intenção de preservar a ilusão de uma “voz própria”. Ao fim e ao cabo, isto, a impostura da autenticidade, é que provoca a famosa e cansada “angústia da influência”. De outro modo, José Antônio Silva vai com gana e dá o salto tigrino. Cabral está mais perto, em alguma medida, da categoria do “literário”. Já Zé Antônio põe à flor da linguagem o tom coloquial, a conversa pedestre. Só que estamos diante de um coloquial autocorrosivo, abrasivo e pós-moderno, isto é, Vagar em Macau projeta um pano de fundo que não é mais o do sertão nem da selva das saúvas macunaímicas, é o mundo tão cosmopolita quanto provinciano, fútil e útil. Imensa mandala deletéria de discursos fungíveis e conflitantes. A terra de todas as cidades e linguagens.  Remate de vida-morte meditado em poema jamais decorativo.


*

Quatro mil mortes morridas

Quatro mil mortes morridas
quatro mil mortes matadas;
tivesse eu mais uma vida
deixava as contas desempatadas.

Quatro mil mais quatro mil
é minha bagagem de vidas
(das matadas e das morridas)
– por que não mais oito mil
pra serem agora vividas?

Não: mais uma vida é o que peço
ou essa mesma mais comprida;
a fieira de dias que meço
não basta para minha lida.

A modo de dizer mais tempo
recordo os filhos por criar;
sugiro minutos mais lentos
e encho o pulmão de ar.

Você que me ouve sentado
levante pra essa escutar:
eu só vivo desarmado
porque me ensinei a cantar.

Não me solte o cão danado
na depressão do terreno.
Já enfrentei esse fado
– e a vigília não atênuo.

E vá-se embora, Seu Coisa
que aqui não é seu lugar;
meu jardim tem pouca rosa
mas espinho não vai vingar.

E agora me despeço
respingando sol e chuva
(e disso também o avesso)
porque essa vida – eu lhe garanto –
me serve como uma luva.





[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com

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