Em 23 de outubro de 2017, com a chamada “As feiras
literárias precisam naturalizar a presença de escritores negros” apareceu no
site Nonada esta entrevista que foi conduzida pela Jornalista Thais Seganfredo.
Como a entrevista foi gravada e sempre ficam lacunas e tropeços típicos da
expressão oral, resolvi republicar aqui no Poesia-pau com pequenas alterações
com o intuito de dar mais precisão ao texto e às ideias. Para quem quiser
cotejar, a entrevista original pode ser lida em:
*
Nonada – Você já publicou diversos livros na
carreira em editoras comerciais também. Agora prepara o lançamento de Subir
ao Mural, que vai ter produção artesanal. Por que essa escolha por uma
editora independente?
Ronald
Augusto – De tempos em tempos, eu sempre faço alguma coisa retomando
aquilo que eu fazia lá no início, em 1983, publicar livros quase artesanais e
de baixa tiragem. Eu gosto de fazer isso, em parte porque o mercado da poesia é
sempre pequeno, então isso dá margem para quem tem algum interesse editorial de
fazer livros diferentes, de não se preocupar com a tiragem nem com a venda
massiva. As pessoas têm mania de dizer que a poesia não vende. Claro que,
comparado aos romances, parece que não tem mesmo, que não há mercado para a poesia.
Ele existe, só é reduzido. Então eu gosto de fazer livros diferentes e fico
entusiasmado quando vejo editoras dispostas a bancar esse tipo de publicação.
De dez anos para cá, isso cresceu muito e tem muitas pequenas editoras espalhadas
pelo Brasil, como a Patuá, que é uma espécie de bastião das pequenas editoras
no Brasil. Mesmo as grandes editoras já têm projetos com menores tiragens,
edições especiais.
Nonada – Que autores e autoras são tuas principais
referências?
Ronald
– O Manuel Bandeira é o maior poeta de todos os tempos para mim. Meu
repertório ainda é bastante feito de homens, João Cabral de Melo Neto,
Drummond, Dante. E aqui no Rio grande do Sul tem um poeta de que gosto muito, o
Oliveira Silveira que, além de ser negro e de sempre ter tido uma preocupação
política voltada ao combate contra o racismo, é um grande poeta. Fiquei muito
feliz de organizar a obra dele [no livro Oliveira Silveira: Obra
reunida (IEL, 2012)].
Entre
as mulheres poetas, eu gosto muito da Orides Fontela e, entre as
contemporâneas, da Leila Guenter (prosadora e poeta), que ainda não é muito
conhecida. Em Porto Alegre, nos últimos 10 anos, eu comecei a conhecer, através
das minhas oficinas, várias poetas produzindo. Ainda quero escrever sobre isso,
me indagando por que, mais ou menos nesses últimos dez anos, do meu
ponto-de-vista, quem está produzindo a poesia mais legal são as mulheres? Antes
eu só via homens publicando, o Silvestrin, o Grando… mas de cinco, dez anos
para cá, surgiu a Eliane Marques, que ganhou o mais recente Açorianos de melhor
livro de poemas, tem a Juliana Meira, a Sandra Santos, a Denise Freitas, a
Deise Beier. E, nesse meio tempo os homens continuaram publicando, mas tenho achado mais interessante a produção delas.
Nonada – Como foi teu primeiro encontro com a
escrita?
Ronald
– Foi um início parecido com o de muitos poetas. Comecei porque estava com
uma paixonite quando era moleque, aos 14, 15 anos. Depois, teve um momento que
eu tinha que fazer ficha de leitura e peguei um livro do Erico Verissimo e um
amigo meu pegou um livro de poemas. Uma ficha de leituras não funciona na
poesia, porque nela se pergunta quem é o personagem principal, o resumo da
história etc. Como eu já tinha lido o Erico Verissimo, peguei o livro do meu
amigo. Era um conjunto dos 50 melhores poemas de Manuel Bandeira. Eu dei sorte.
Ali eu vi que a poesia era mais do que paixonite, era arte.
Nonada – As festas e feiras literárias
brasileiras aparentemente têm avançado no sentido de aumentar a diversidade.
Você tem vivenciado isso nos eventos que participa? Qual seria o próximo
passado nesta caminhada?
Ronald
– É complicado. Outro dia, a gente estava na Jornada [Nacional de
Literatura, em Passo Fundo] em um seminário sobre a cena da literatura no Rio
grande do Sul, e a Lilian Rocha falou em duas etapas: uma etapa de abrir
espaços e outra de permanência. Talvez uma próxima etapa seja que se naturalize
a convivência com a diversidade de produção textual, e que se convide com
naturalidade outros escritores. Ainda é complicado falar sobre esse tipo de
coisa. Recentemente, eu fiz um post no Facebook sobre a Coleção Folha Mulheres
na Literatura, falando que só tem mulheres brancas na coleção. Aí uma poeta
ficou irritada com meu post, disse que “não importa se é um extraterrestre ou
uma planta, o que importa é a literatura”. Respondi para ela que as
determinações sociais estão sempre presentes no texto, direta ou indiretamente,
ainda que de forma mais consciente ou inconsciente, estão ali. A ideologia está
no texto, só temos que saber lidar com consciência com esses reflexos que
aparecem no texto.
Geralmente,
quem invoca o conceito da “qualidade literária” – que, nestes casos,
serve com uma tradução para a noção de “torre de marfim” – quando se refere à
produção de segmentos intelectuais e artísticos que historicamente foram sempre
desrespeitados, no caso dos negros, homossexuais, mulheres, na verdade quem
questiona a qualidade destes escritores não conhece nem 10% do que foi e é
produzido, ou seja, o objetor já parte do princípio que não tem qualidade. As
pessoas acham que eles vão entrar no campo literário por “cotas”, e
desconsideram que há uma qualidade que precisa ser lida em profundidade e em
extensão. Pois para se falar em termos de qualidade é preciso ler bastante, é
preciso incorporar a categoria da quantidade, da diversidade. Então acho que
isso, certa resistência, ainda seguirá pesando quando as curadorias das feiras
e eventos literários precisarem dar atenção para a diversidade.
Mas
eu digo que é complicado também porque eu tenho medo que o acolhimento e o
reconhecimento desses autores seja mais uma questão de reconhecer apenas o
ativismo. Tudo bem, eu acho que ativismo é importante, mas os textos têm que se
sustentar para além do ativismo, porque a gente espera que, um dia, essas
causas deixem de ser necessárias. Eu noto muito isso, porque me convidam para
eventos dizendo que sou “poeta e ativista”, quando não sou ativista, sou
escritor.
Nonada – Mas tu te define como um artista
político?
Ronald
– Eu me vejo como um artista bastante interessado em trabalhar a
linguagem. No meu ponto de vista, quando o escritor trabalha a linguagem por
dentro, ele acaba tocando em questões ideológicas, porque isso também é tocar
na questão de sentidos e conceitos. Tem um poema do José Paulo Paes que opera
com essas questões, parece que ele só está fazendo um jogo de linguagem, mas na
verdade está discutindo questões ideológicas. São dois versos, mas o título é:
Lembrete Cívico
Homem
Público
Mulher Pública
O
qualificativo “público” para o homem quer dizer um político, para a mulher é
uma prostituta, meretriz. Então, se tu pensa a linguagem radicalmente,
conceitualmente, ela acaba sendo política, ela acaba sendo perturbadora. Eu me
vejo assim, mas não me importo se disserem que eu tenho uma faceta política
também.
Nonada – Qual é o papel das academias literárias
hoje?
Ronald
– Para mim, elas cumprem um papel um pouco anacrônico, fazem parte de uma
visão que se tinha da literatura como um “sorriso da sociedade”, expressão já
utilizada por outros autores para definir a arte como uma coisa decorativa, uma
espécie de sala de estar, de espaço de mero repouso. Ainda hoje temos ecos
disso, com um tipo de literatura que não fede nem cheira, que é só frívola. Eu
até brinquei esses dias, estava vendo imagens de academias de pequenas cidades
do interior, e os caras aparecem com umas roupas horrorosas, cafonas. As
academias não cumprem uma função relevante, nem social nem política. São
lugares onde alguns pequenos e medíocres escritores se reúnem para se
prestigiar mutuamente, por isso fico triste quando escritores que admiro querem
entrar para as academias. Na Academia Brasileira de Letras é assim também, as pessoas
querem entrar por uma espécie de glamour.
Nonada – Nos últimos anos, têm surgido vários
relatos que antes eram silenciados no mundo acadêmico, com relação a
preconceito e assédio de etnia e de gênero também. Na área de Letras, por
exemplo, isso tem sido bem marcante com a Crítica Feminista. Você acha que isso
tem provocado mudanças concretas no sistema?
Ronald
– Acho que sim e acho que parte do prestígio que a literatura negra
atingiu nos últimos anos se deve também, em alguma medida, ao interesse da academia.
A produção dos autores que se assumem como negros e começam a publicar já tem
mais de 30 anos. Depois que as pesquisas acadêmicas começaram a ser feitas, a
gente pode retroagir até o século XVIII e aí também vamos encontrar livros de
escritores negros. Mas da década de 80 para cá, essa produção ganhou uma
dimensão impressionante, e começou como um movimento de um grupo não muito
grande de escritores espalhados pelo país. Alguns escritores dessa geração,
como Cuti, Oliveira Silveira, Oswaldo de Camargo, deram a primeira munição para
os acadêmicos começarem a ter interesse no tema. E de lá pra cá a produção foi
crescendo, hoje também no exterior se estuda a literatura negra do Brasil. Um
exemplo robusto desse interesse e da repercussão disso em termos de produção
teórica é a antologia Literatura e afrodescendência no Brasil:
antologia crítica, composta por 4 volumes, que a Universidade Federal de
Minas Gerais editou, e que contém autores do século XVIII até a
contemporaneidade.
Minha
única dúvida é até que ponto essa produção, na medida em que ela dá prestígio,
pode se tornar aos poucos uma espécie de espaço de consagração e de limite,
deixando a produção presa. Será que, para eu ganhar espaço, tenho que continuar
me reivindicando como autor negro e me posicionando dentro desse nicho? Já que
literatura é arte, ela tem que estar sempre à frente, não a reboque da crítica
ou da análise. Se os autores mudarem a sua forma de produzir, a crítica vai ter
que acompanhar e propor outros modelos interpretativos. Atualmente, para
efeitos interpretativos e didáticos, a academia está interessada em demarcar o
que é e o que não é literatura negra. Isto é importante, mas a gente não pode
ficar refém do prestígio que acompanha tal recepção.
Nonada – Alguns poemas teus falam sobre a
branquitude, um termo que deveria ser infinitamente mais debatido do que é
atualmente. Qual é o papel do branco na luta antirracista e por que o tema não
aparece nas obras de autores brancos?
Ronald
– O Sartre disse uma coisa muito legal, acho que foi no prefácio que ele
fez para um livro de poetas da negritude francesa. Ele disse que o branco gozou
do privilégio, durante dois mil anos, de nunca se ver. O branco sempre se
colocou na posição de observar tudo como um objeto a partir do interesse dele.
Quando eu falo sobre branquitude é porque os brancos também têm que se entender
socialmente, entender seus privilégios na sociedade, como é muito mais fácil
para quem é branco até entrar no banco do que para quem é negro. É só isso.
Tem
gente que diz que estou sendo racista. Não é racismo, é um convite. Para a
mudança racial no Brasil realmente acontecer, para isso ser debatido com mais
cuidado, todo mundo tem que se reconhecer, nas suas virtudes e nos seus vícios.
Quando a gente fala em racismo, parece que é só um problema dos negros. Não, é
problema de todos. Assim como quando se fala em machismo, isso também é
problema dos homens, desde que fiquem quietos, mas eles também têm que se dar
conta. É nesse sentido que eu falo em branquitude e também em branquesia,
que é a consciência da hegemonia e dos privilégios que essa hegemonia dá para
quem é branco.
Nonada – Por que ainda não conseguimos romper a
bolha do provincianismo gaúcho na cultura e no jornalismo?
Ronald
– Tem gente que diz que pensar cosmopolitamente é uma forma de
provincianismo. Eu acho que pode haver um provincianismo pejorativo e outro
mais positivo, que é o de olhar para o seu lugar e transformar ele em algo fora
do comum. Mas aqui, eu acho que é um pouco essa coisa da história do Rio Grande
do Sul, um estado que tentou ficar independente e criar um país próprio e não
conseguiu, isso gerou esse orgulho excessivo, de achar que a gente sustenta os
outros estados.
Ao
mesmo tempo, o gauchismo é algo inventado. O Richard Serraria escreveu um
texto sobre isso outro dia. Parece que na década de 1940, estavam fazendo
pesquisas etnográficas musicais aqui no estado e teve um memorando interno
dizendo que os registros das produções culturais daqui ficassem restritos aos
aspectos açorianos. O resto era para deixar pra depois. Então de uma certa
maneira, a cultura daqui é inventada. Se inventou que a nossa cultura é essa, o
Jornal do Almoço todo dia tem alguma coisa de CTG. Aí a nossa cultura
afro-gaúcha, ameríndia, que são muito fortes, não aparecem. O provincianismo é
uma forma de, contra tudo e contra todos, tornar hegemônica uma cultura que é
artificial.
E
isso não acontece só aqui. Eu estive em Lages para participar do Salão do
Livro, e um jornalista que me entrevistava disse que eu ia falar para um
público branco, de descendentes italianos e alemães. Quando subi ao palco notei
que o público era só de negros. Para ele, Lages não teria negros interessados
nessas coisas de literatura, a cidade não quer enxergar isso.
Nonada – Mas com a militância do movimento negro,
no sentido cultural, isso tem avançado no estado?
Ronald
– Tem avançado. É uma conquista ter o Manoel Soares e agora a Carol
Anchieta no Jornal do Almoço, e ela está lá porque eles querem que ela leve
esse tipo de informação para a pauta. Então isso está começando a andar, claro
que existe os interesses do capital e a audiência a ser ampliada nisso, mas
temos que saber lidar com essas portas que se abrem.
Nós
temos o Sopapo Poético, um lugar que a
comunidade negra há tempos não tinha aqui em Porto Alegre. Para mim, o Sopapo
poético, mais do que um encontro de poesia, é um encontro afetivo. Isso
havia se perdido, porque na década de 1980, o Oliveira Silveira e outros se
reuniam no Mercado Público, que naquela época era um lugar de convivência e de
várias associações comunitárias, onde sempre havia sarau, roda de poesia,
debates etc. E o Sopapo Poético recuperou isso.
Cada
vez mais a sociedade aceita essas lutas e reivindicações sem tanto trauma. Na
época das cotas houve esse terrorismo com relação à possibilidade de que o
Brasil ia se dividir entre negros e não-negros. Não teve trauma, não teve
guerra inter-racial. Mas agora o trauma é a questão da homossexualidade e de
gênero. Do ponto de vista dos conservadores estamos diante do final dos tempos,
é tudo tão bizarro, essa é a nova neurose. Jamais pensei que fossemos retornar
a esse ponto. Mas tudo é questão de avanços e refluxos. No ano passado, quando
levantei a questão de quantos autores negros estariam na Feira do Livro de
Porto Alegre, deu aquele debate. Esse ano estou fazendo outras coisas, mas eu
sei pelo Jeferson [Tenório, escritor negro que fez um post sobre atividades
recusadas pela administração do evento] que
a feira está com a mesma posição, apresentando respostas atravessadas – pelo
menos da parte adulta, porque a parte infanto-juvenil sempre nos respondeu.
Então temos que continuar lutando.
Nonada – A classe artística tem meios para vencer
essa disputa de narrativas com o avanço conservador e as ações de censura?
Ronald
– Todo artista precisa ter bastante consciência da linguagem que ele está
usando, porque senão o discurso pode ser muito legal e bacana, mas pode ficar
conservador, careta. Tem uma frase complexa do Maiakovski que eu gosto: “Não há
forma revolucionária sem conteúdo revolucionário”. Nesse momento, eu vejo uma
vontade muito grande – que é importante –, de dizer as coisas, de levar uma
mensagem de transformação, mas isto tem que começar na linguagem. Por outro
lado, isso só funciona se a recepção não for imbecil, se entender que as
rupturas de linguagem que fazem parte da dimensão artística. Arte que não
propõe rupturas, incômodos, desafios, não tem sentido. Com essa história de
dizerem que artista é pedófilo, essa celeuma toda, um monte de gente começou a
dizer o que é arte e o que não é, todos se manifestaram nas redes sociais, acontece
que muitos nunca pensaram sobre essas questões, mas foram categóricos em seus
julgamentos reacionários. É preciso ter essa interação entre artista e
sociedade, porque a arte, de uns tempos para cá, está mesmo mais afastada do senso
comum.
Nonada – Qual é a função do Estado em relação à
cultura?
Ronald
– O Brasil tem muitas lacunas sociais e econômicas, então o Estado não
pode saltar fora na sua responsabilidade com a educação, com a saúde e com a
cultura. Se o Brasil fosse um país saudável economicamente, isso poderia ser
discutido com algum cuidado. Por exemplo, em uma feira de agronegócio esses
tempos, as atrações musicais eram só de representantes do sertanejo, não tinha
nenhum artista que fizesse outro tipo de música. E o papel do Estado é fazer
políticas que estimulem a diversidade das produções culturais. Mas aí vem um
louco como o Sartori e luta para acabar com a Fundação Piratini, quando deveria incentivar
a diversidade das representações culturais-musicais que marcam a atuação de uma Fundação como esta.
Nonada – Como tu vê o jornalismo cultural hoje em
dia, em comparação ao início da tua carreira?
Ronald
– Em relação aos jornais, tem uma mudança, mas acho que muito tímida
ainda. Passamos o final da década de 1980 e toda a década de 1990 sem nada.
Agora o Juremir e o Gonzaga recuperaram o Caderno de Sábado [do Correio do
Povo], mas acho que é pouco espaço ainda. Tem gente que diz que esses cadernos
de cultura vão acabar, vão ficar mais cadernos de comportamento, algo assim.
Mas o debate autêntico cultural está em outras plataformas, está na internet.
Tem tanta coisa acontecendo lá que eu não consigo me atualizar, minha geração
pensa muito ainda só na mídia impressa e tradicional. A gente sempre fica
pensando como estão as coisas na tv e no jornal. Na verdade, não estão, não
precisamos depender disso ou esperar por suas providências. Eu mesmo escrevo
para o Sul 21, além de despachar nos meus blogs. E esses sites acompanharam
essa explosão de participação através das redes sociais, na interação, no
diálogo.
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