Um supremacista menor
Ronald Augusto[1]
No tocante aos casos explícitos
e documentados de agressão racial contra negros, já virou rotina acontecer o
seguinte (anotem e depois me cobrem): horas depois desses episódios
protagonizados, de ordinário, por brancos, surge uma onda de empatia branca em
defesa do eventual agressor. Recentemente foi este, por exemplo, o tom de
diversas manifestações após os xingamentos racistas da torcedora gremista,
branca, direcionados ao goleiro Aranha e que, felizmente, as câmeras
registraram. Pois agora, o mesmo começou a ocorrer tão logo se tornou público o
vazamento de um vídeo em que o âncora William Waack é capturado expressando
juízo racista sobre um indivíduo, supostamente negro, a um interlocutor que, ao
que parece, concorda sorrindo com a opinião do jornalista, como se vê nas
imagens. Iguais de Waack, isto é, brancos ou companheiros de profissão, tanto
de esquerda como de direita, já se referem ao fato ou à coisa toda como um deslize,
um comentário infeliz, que, entretanto, e sem que os iguais se deem – ou não
queiram se dar – conta, ofende mais da metade da população do país, tirante
quem sabe Carlinhos Brown, esse dublê de pensador que se imagina em uma época
de fraterna interação pós-racial.
Um argumento em favor do
jornalista da Globo do qual tive notícia, diz que uma coisa é alguém reproduzir
privadamente um dito de cunho racista e outra coisa é ser racista convicto e,
de alguma forma, militar ou atuar publicamente em desfavor dos negros. Em
primeiro lugar, afirmar que essa ou aquela atitude incômoda, inapropriada (no
caso em questão o buzinaço do suposto negro atrapalhando a entrevista), seria
“coisa de preto”, isto é, uma espécie de predicado de certo tipo de pessoa,
algo que lhe seria essencial, já é bem questionável; pois bem, se isto não é
racismo, então não estamos falando a mesma língua eu e quem defende tal ponto
de vista. Em segundo lugar, e só para não nos esquecermos, racismo não é apenas
pendurar pessoas em árvores como frutos estranhos porque essas pessoas seriam estranhas a determinados grupos sociais;
racismo não significa apenas mandar os
outros para a câmara de gás. Coisas desse tipo representam na verdade o
extremo e a radicalização de prosaicas situações e ditos que são concebidos como
naturalizados e naturais desde sempre a ponto de não se diferenciarem de meros
deslizes ou mal-entendidos, porém com desdobramentos e consequências absurdas.
A noção de que podemos
cogitar “níveis diferentes” de desrespeito racial, no sentido em que uns estariam
mais sujeitos a ser responsabilizados por seus atos de racismo do que outros,
não faz o menor sentido. Tal concepção parece supor situações em que eu, como
negro, teria que relevar, lançar panos quentes, esboçar um sorriso envergonhado
diante de desrespeitos inadvertidos ou, por assim dizer, mais leves. Segundo os
defensores dessa tese, o jornalista seria não um supremacista renhido, mas um
racista sob controle, cotidiano, igual a todos nós quando, aqui e ali,
tropeçamos em preconceitos durante nossos papos informais com gente próxima.
O raciocínio é falacioso
na medida em que apresenta como padrão de julgamento – e, logo, de um perdão
elástico –, um exemplo de barbárie e terror extremo cuja maior ou menor
proximidade dele nos daria uma aferição mais ou menos justa tanto do nosso
quanto do preconceito alheio. Isto é, quanto menos próximo do fundamentalismo
supremacista mais chance teria o ocasional racista de receber o benefício da nossa
tolerância. Deste modo, parece relativamente
fácil ao branco sensível se colocar em posição de oportuna e venal autocrítica
e, em decorrência, atenuar o racismo aparentemente diminuído do âncora.
Entendo que as críticas
duras ao jornalista, o ódio (compreensível) de muitos negros e até a cobrança
por sua punição no âmbito da justiça – afinal, racismo é crime – não vão dar
cabo do racismo. Não basta personalizar o acontecido, porém é preciso ir até as
suas últimas consequências. O
significado do fato até pode ser levado em conta, pois ele ultrapassa a figura
do racista do momento. Sim, o racismo é uma ideia, uma interpretação de mundo, mas
quem faz essa ideia aparecer no mundo real são indivíduos que tomam partido
deste ou daquele modo distorcido de interpretá-lo. Combater e enfrentar por
todos os meios razoáveis o racista de plantão é combater também o racismo. É um
absurdo dizer que devemos combater a ideia ou o princípio e deixar de lado o
seu substrato, isto é, o sujeito que comete o crime em nome da ideia e que, de
resto, a encarna.
Por fim, outros, mesmo
admitindo o jornalista como um racista, tentaram conciliar toda a tensão com o
entendimento de que, enfim de contas, foi mesmo um deslize, porque, você sabe,
quem não proferiu à boca pequena alguma observação preconceituosa na vida? De
minha parte acho que uma coisa se segue da outra, ou seja, a fala de William
Waack não foi meramente acidental. Expressando o dito maldito, meio que
sussurrando ao ouvido cúmplice, foi como se ele procurasse ofender, porém sem
ofender. Além disso há a interpretação de que ele foi alvo de armação. Alguém
teria se aproveitado da situação, talvez como vingança pessoal, para fazer com
que seus superiores o enquadrassem ou, até mesmo, para que fosse demitido da
Globo. Se considerarmos a odiosa continuidade do problema do racismo risonho no
Brasil, essa versão para mim acaba sendo irrelevante. O vazamento aconteceu em
boa hora.
[1] Ronald
Augusto é poeta,
músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/
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