Dois modos de escravidão: a do essencialismo e a do fisiologismo
Desgraçadamente, embora
dentro de certa rotina, poucos não deixaram vazar seu racismo ao comentar o
caso bizarro da ministra (do PSDB) que serve ao governo golpista em condição,
segundo ela, de quase escravidão devido a uma depreciação salarial. É duro
afirmar isso, porém a ministra reforçou a noção de que negros de direita pensam
como negros da casa-grande: esses que preservam por todos os meios, lícitos ou ilícitos,
a própria sobrevivência, a própria pele. Porém, é preciso dizer melhor, para
ficar mais rente à realidade: geralmente negros nos escalões de qualquer
governo pensam ou são amados como negros da casa-grande.
Um ponto que é importante
não esquecer é que estamos nos referindo, sim, a alguém que é do PSDB e que
participa do governo mais impopular da história. Ainda que haja um vapor
racista na polêmica, não posso negligenciar a solidariedade da ministra com
essa situação horrorosa. Se muitos pretendem livrar a cara de alguém que está
comprometido com o golpe parlamentar, baseados em algum tipo de essencialismo
sentimental, então chego à conclusão de que eles ou são intelectualmente
desonestos ou ingênuos. Argumentar que “nenhum negro merece a nossa [de negros]
crítica” também não ajuda em nada. Isso significa fazer papel estereotipado de
branco em todos os casos em que a crítica seja necessária? Por outro lado, se a
questão é a reprodução dos mesmos ritos de autopreservação da branquitude – isto
é, não dar um tranco merecido nos supostos iguais –, o que haveria, então, de
revolucionário e negro nisso?
Tirante, portanto, o
racismo que segue sempre à espreita e que, nestas ocasiões, vem à superfície
com uma rapidez asquerosa e, de outra parte, apesar da defesa obtusa dos
autoproclamados “irmãos” e “irmãs” da ministra, pois, ao que parece, a família
vem sempre em primeiro lugar, enfim, tentando deixar de lado, ao menos por um
segundo, esses interesses, é curioso constatar que a ministra, frente à
repercussão negativa, de imediato deu meia volta volver em sua demanda
supostamente justa de aumento ou de equiparação salarial com os seus pares. Este
fato, que sugere o uso meramente instrumental tanto da tópica da escravidão,
como do raciocínio de base racial, também é pouco considerado. A ministra do
governo golpista reagiu à opinião pública ou a um possível murmúrio do sinhozinho?
Já não faz diferença. E no que me afeta, a única coisa que vale a pena afirmar é
o total fracasso da tese de que precisamos de “negros nos espaços de poder”.
Precisamos, sim, de negros desobedientes com
e no poder. E a proposição de
outros modos de exercício de poder.
Por fim, um dado interessante
relacionado ao tragicômico episódio da ministra – de você-sabe-quem –, diz
respeito ao notável desacordo de opiniões e julgamentos manifestado pelas
pessoas negras. Houve crítica, defesa, vitupério, neutralidade e humor. Do meu
ponto de vista achei ótimo. Comprova – aos desavisados de cá e de lá – que não
há apenas um movimento-pensamento negro, mas movimentos, atitudes, visões,
considerações negras em perspectiva e em vertiginosa transformação. Comprova
que não pensamos em bloco, que, felizmente, há campo para o dissenso criativo e
crítico. Considerar as coisas em termos de um discurso que funda
“o-negro-isso-o-negro-aquilo”, como se fossemos uma unidade, serve apenas para
conferir sobrevida à branquesia e seus medos.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico,
letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya
(1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No
Assoalho Duro (2007), Cair de Costas
(2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com
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