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Dois modos de escravidão: a do essencialismo e a do fisiologismo

Dois modos de escravidão: a do essencialismo e a do fisiologismo





Ronald Augusto[1]

Desgraçadamente, embora dentro de certa rotina, poucos não deixaram vazar seu racismo ao comentar o caso bizarro da ministra (do PSDB) que serve ao governo golpista em condição, segundo ela, de quase escravidão devido a uma depreciação salarial. É duro afirmar isso, porém a ministra reforçou a noção de que negros de direita pensam como negros da casa-grande: esses que preservam por todos os meios, lícitos ou ilícitos, a própria sobrevivência, a própria pele. Porém, é preciso dizer melhor, para ficar mais rente à realidade: geralmente negros nos escalões de qualquer governo pensam ou são amados como negros da casa-grande.
Um ponto que é importante não esquecer é que estamos nos referindo, sim, a alguém que é do PSDB e que participa do governo mais impopular da história. Ainda que haja um vapor racista na polêmica, não posso negligenciar a solidariedade da ministra com essa situação horrorosa. Se muitos pretendem livrar a cara de alguém que está comprometido com o golpe parlamentar, baseados em algum tipo de essencialismo sentimental, então chego à conclusão de que eles ou são intelectualmente desonestos ou ingênuos. Argumentar que “nenhum negro merece a nossa [de negros] crítica” também não ajuda em nada. Isso significa fazer papel estereotipado de branco em todos os casos em que a crítica seja necessária? Por outro lado, se a questão é a reprodução dos mesmos ritos de autopreservação da branquitude – isto é, não dar um tranco merecido nos supostos iguais –, o que haveria, então, de revolucionário e negro nisso?
Tirante, portanto, o racismo que segue sempre à espreita e que, nestas ocasiões, vem à superfície com uma rapidez asquerosa e, de outra parte, apesar da defesa obtusa dos autoproclamados “irmãos” e “irmãs” da ministra, pois, ao que parece, a família vem sempre em primeiro lugar, enfim, tentando deixar de lado, ao menos por um segundo, esses interesses, é curioso constatar que a ministra, frente à repercussão negativa, de imediato deu meia volta volver em sua demanda supostamente justa de aumento ou de equiparação salarial com os seus pares. Este fato, que sugere o uso meramente instrumental tanto da tópica da escravidão, como do raciocínio de base racial, também é pouco considerado. A ministra do governo golpista reagiu à opinião pública ou a um possível murmúrio do sinhozinho? Já não faz diferença. E no que me afeta, a única coisa que vale a pena afirmar é o total fracasso da tese de que precisamos de “negros nos espaços de poder”. Precisamos, sim, de negros desobedientes com e no poder. E a proposição de outros modos de exercício de poder.
Por fim, um dado interessante relacionado ao tragicômico episódio da ministra – de você-sabe-quem –, diz respeito ao notável desacordo de opiniões e julgamentos manifestado pelas pessoas negras. Houve crítica, defesa, vitupério, neutralidade e humor. Do meu ponto de vista achei ótimo. Comprova – aos desavisados de cá e de lá – que não há apenas um movimento-pensamento negro, mas movimentos, atitudes, visões, considerações negras em perspectiva e em vertiginosa transformação. Comprova que não pensamos em bloco, que, felizmente, há campo para o dissenso criativo e crítico. Considerar as coisas em termos de um discurso que funda “o-negro-isso-o-negro-aquilo”, como se fossemos uma unidade, serve apenas para conferir sobrevida à branquesia e seus medos.





[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com


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