Slammers são poetas?[1]
Ronald Augusto[2]
Em um
trecho indecidível localizado entre o racismo estrutural e o renitente discurso
da “democracia racial”, leitores-sujeitos negros e brancos vêm deparando já há
algum tempo com formas de linguagem que põem em cena o desejo de escritores
negros de falar a propósito de – e transfigurar poeticamente – sua interação
tanto com o estado de coisas do seu tempo, quanto com a necessidade de sua
transformação. Nas últimas três décadas, mais ou menos, por força desse movimento,
percebemos um aumento de visibilidade da representação negra na sociedade
brasileira – seja nos meios de comunicação, seja nas artes, na literatura, seja
no âmbito acadêmico – e a tal ponto que seu caráter “marginal”, diante das
formas de expressão consagradas, vem sendo ao mesmo tempo colocado em questão e
redimensionado em uma perspectiva de afirmação.
A partir desse pano de
fundo constato a presença efetiva de vários escritores e poetas negros em Porto
Alegre e, inclusive, o surgimento de uma editora, a Figura de Linguagem, cujo
projeto é o de publicar os escritos desses autores. Do ponto de vista de uma
visibilidade alcançada graças à publicação, digamos que hoje há mais escritores
negros do que nas últimas duas décadas. Isto é, a não publicação dava a
impressão de uma constrangedora ausência de negros escritores na capital. De lá
até aqui, marcando a mudança do quadro, posso citar alguns nomes: Eliane
Marques, Jorge Fróes, Taiasmin Ohnmacht, Ana dos Santos, Jeferson Tenório,
Lilian Rocha, Duan Kissonde, Marcelo Martins Silva, Tônio Caetano, Luiz
Maurício, Fernanda Bastos, Luiz Horácio Rodrigues, Marlon Pires Ramos. Quase
todos da lista já têm livro publicado, um e outro com mais de uma obra. Apenas
dois ou três em vias de publicar seus livros de estreia. As perspectivas
parecem promissoras.
Não posso deixar de
registrar aqui o relevante trabalho do coletivo Sopapo Poético e sua
mobilização da comunidade negra em torno do fazer literário de escritores em
formação através de saraus periódicos.
Por razões que a
sociologia e a história explicam muito bem, a cena cultural na periferia é
negra. Portanto, a invenção e reinvenção de formas literárias (rap, funk, hip
hop, slam) por parte das pessoas negras é um dado verificável dentro da ideia
de afirmação de uma estética e atitude próprias frente à cultura oficial
branca. Entretanto, o conceito de “literatura negra” – que, felizmente, se
constitui em um debate inconcluso – não se confunde com o conceito de
“literatura periférica”. Há pontos de contato, há trânsitos, mas as produções,
grosso modo, trabalham com distintos registros de linguagem.
Não sou um conhecedor
do slam. Até onde consigo compreendê-lo, arrisco dizer que o slam parece a
performatização da poesia em sua dimensão oral e corporal. É a afirmação da
fala sobre o legível, uma batalha entre a voz e a mancha gráfica do texto
impresso. Só por esse traço podemos concluir que se trata de um outro sistema de
signos. Há algo de pop no slam. Por ser mais oral, confina com a crítica à
poesia grafocêntrica e à literatura que nasce-morre apenas entre as capas do
livro. No slam todos são poetas e ninguém é poeta. São slammers. Um slammer é
um poeta? Podemos nos servir do termo “poeta” à maneira de um qualificativo e
aplicá-lo à figura do slammer. Aliás, muitos procedem assim quando querem se
referir, por exemplo, ao seu compositor popular favorito: “Cartola é um poeta”.
Entretanto, se o que está em jogo é a conquista de uma autonomia expressiva
relativamente às formas poéticas consagradas, então eu diria que um slammer –
sem pressupor qualquer gradiente valorativo – não é um poeta; o slammer não é
um mero sucedâneo do poeta. Acho. Mas há quem diga que os slams são apenas uma
forma de divulgar ou popularizar a poesia. Espero que isso não seja verdade,
pois considero um objetivo bom-moço e simplista.
Por fim, o conceito em
progresso da literatura negra pressupõe um escritor negro que se reconhece
negro desde uma categoria estético-política. Em outras palavras, o escritor
branco devotado à temática afro-brasileira não estaria fazendo literatura
negra, mas, sim, uma espécie de literatura negrista. O slam, mesmo que seja
considerado como uma forma poética periférica, não é necessariamente literatura
negra.
[1]
Esse breve texto é
resultado de algumas questões relativas à produção literária negra que me foram
apresentadas pelo escritor e jornalista Vitor Necchi, amigo e interlocutor.
[2]
Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela
UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao
Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões
Aplicadas (2004), No Assoalho Duro
(2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida
(2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21:
http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ronald-augusto/
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