Solidariedade
maledicente e infernópolis
Ronald
Augusto[1]
Todo mundo caiu de pau
(e, em alguma medida, com razão) em cima do recém nomeado presidente da Fundação
Cultural Palmares por causa de suas declarações e trollagens contra os
movimentos negros. Por outro lado, e curiosamente, o antropólogo Antonio Risério
há anos vem nos oferecendo a mesma qualidade de leviandades (só que com aquele
verniz intelectual que tantos apreciam) e ninguém expressa um par de palavras
para contraditá-lo.
Mas, sim, Martinho da Vila
respondeu aos comentários grosseiros de Sergio Nascimento de Camargo. Sim, o
próprio irmão passou um pito neste cidadão. Sim, o pai é um importante escritor
e tradicional militante negro. Encontrei essas notícias aqui e acolá, e gente
conhecida, com presteza, veio me contar uma e outra novidade. Só que tudo isso
ainda é informação irrelevante e maledicente, porque a intenção é demonizar o
sujeito isolando-o do conjunto. Vocês não precisam disso para dizer que ele não
passa de um preto de alma branca ou de que se trata de um capitão do mato, um
negro da casa-grande. Por favor, não dissimulem. Vamos! Upa! Soltem seus
cachorros e não me aborreçam com esse tipo de solidariedade.
O governo de Jair
Messias Bolsonaro já havia trollado o feminismo, o movimento LGBT, os
ambientalistas, os professores, a classe artística etc, agora parece ter chegado
a vez de trollar os movimentos negros e personalidades representativas da
causa.
A nomeação desse
militante de direita para a presidência da Fundação Cultural Palmares significa
mais um gesto simbólico do notório desrespeito do atual governo por todas as
causas dos direitos civis. É apenas isso, o que é péssimo. Entretanto, o fato
não garante salvo conduto para os progressistas liberarem seu racismo reprimido
contra o negro em evidência do momento. O negro é sempre um incômodo, para o
bem ou para o mal.
Se já é fácil injuriar
uma pessoa negra mesmo que ela não tenha feito nada de censurável, imagine
então quando uma pessoa negra é tóxica ou cai em algum tipo de contradição.
A propósito, quem
lembra que Diego Hypólito simpatiza com o nosso homofóbico presidente? Por que,
de repente, esquecemos de milhares de mulheres e gays bolsonaristas? Afinal de
contas, qual a surpresa de haver negros no lado do protofascismo lacrador? Não
estou defendendo nenhum tipo de resignação, apenas constatando um fato.
Então você não vai
criticar o novo presidente da Fundação Cultural Palmares? O racismo inadvertido
e/ou oportunista da branquesia o fará por mim. Difícil é conter a crítica dura
em relação às falas discriminatórias de Sergio Nascimento de Camargo – crítica que pode e deve ser feita por negros e
brancos comprometidos com as lutas da população negra –, porém, sem que isso se
transforme em rendição ao racismo inercial com que nos toleramos minimamente.
Em relação ao abaixo
assinado que já circula na internet, pedindo a destituição do atual presidente
da Fundação Cultural Palmares, e em que pese a boa intenção, só uma coisa pode
ser dita: é inócuo. Mesmo que seja exitoso, a troca será de seis por meia
dúzia. Alguém me diga de que adiantou, por exemplo, a mudança no comando do
Ministério da Educação?
Qualquer um que venha a
ocupar um cargo nesse governo é um colaboracionista do protofacismo, portanto,
os ataques meramente pessoais ao presidente da Fundação, esquecendo
convenientemente a circunstância em que ele está implicado, são seletivos e
racistas. Por isso mencionei os ouvidos moucos dos progressistas e antirracistas
às afirmações do poeta Antonio Risério em relação aos ativismos negros e que diferem
muito pouco das apresentadas por Sergio de Camargo.
Nesta quadra dos
acontecimentos a Fundação não é mais que uma simples extensão da ideologia do
governo Bolsonaro. Esse político saudado por um ex-líder da Ku Klux Klan como
uma espécie de igual, e que acredita que não escravizou nenhum negro e que nega
nosso racismo cotidiano, só poderia mesmo autorizar o nome de um subalterno,
negro ou branco, que defendesse suas ideias. Ou seja, só nominalmente a Fundação
é hoje um equipamento voltado aos interesses e problemas dos negros. Como
alguém já disse, se o Ministro do Meio Ambiente não mede esforços para se
indispor com os ambientalistas, se seu colega da Educação se ocupa em destruir
as políticas públicas para a educação, então, o que se poderia esperar do
sujeito que fosse guindado à presidência da Fundação Cultural Palmares? Não há o
que remediar. É necessário encarar a situação sem ingenuidade e sem temor. A Fundação,
certamente, não é mais aquela. E, diante das circunstâncias, não há motivo para
crer que pode nos representar.
Post-Scriptum
Nove jovens morrem em
decorrência de ação policial em baile funk. São Paulo, Paraisópolis. Eruditos,
denunciamos: isso é necropolítica! Acontece que o conceito que usamos não faz a
menor diferença para o Estado e a sociedade dos cidadãos de bem. Cada episódio
desse genocídio (outro conceito que está indo para o ralo) não passa de uma
“operação desastrosa” das forças policiais. Os excessos serão investigados,
dizem os representantes do alto escalão.
Felizmente a literatura
nos salva. Salva quem, afinal? Brancos adoram ler relatos de escritores negros
que narram os transes de uma vida de negro. Gente que não passa fome adora ler
os relatos impactantes dessa galera que passa fome.
[1]
Ronald
Augusto é poeta,
letrista e crítico de poesia. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre
outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro
nem claro (2015) e À Ipásia que o
espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no
http://www.sul21.com.br/jornal/
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