Recentemente, um crítico maledicente escreveu — mais ou menos nestes termos —, que diante do suposto desprestígio experimentado pela poesia concreta em nossos dias, já poderíamos pôr de lado, enfim, o nome de Max Bense. A opinião do comentarista denuncia no mínimo uma forma sutil de covardia intelectual. Pois se Bense ― supondo que tenha sido mesmo uma impostura ― só mereceu estar na ordem do dia do pensamento estético das últimas décadas mercê da militância concretista, e, além do mais, sem que ninguém demonstrasse peito suficiente para se contrapor a isto, mais indigente se revela ou se revelaria, então, o establishment literário e cultural do período.
De outro ponto de vista, o argumento ardiloso do crítico desconsidera um traço de extrema importância do movimento da poesia concreta. Vale dizer, junto aos importantes poemas legados pelo movimento, muitos dos quais já incorporados, inclusive, ao acervo poético das últimas décadas, consta o repertório teórico-crítico trazido pelos “trigênios vocalistas” para o nosso convívio desde então. Alguns, levando a efeito uma espécie de fogo amigo, consideram essa herança ainda mais significativa do que a própria obra dos representantes do concretismo. Mas a propósito destas questões cabe abrir um parêntese.
Na virada do século, os veículos de imprensa se especializaram em fazer listas dos “dez mais” do que quer que fosse. Os suplementos culturais, desde os menores e mais alternativos até os de maior prestígio na época (apoiados em um elenco bem diversificado de consultores que abrigava poetas, críticos, filósofos e professores de literatura) apresentaram suas listas dos melhores poemas do século passado. Pois bem, para a insatisfação dos devotos da poesia tipográfico-sentimental, em cada lista que se publicava aqui e ali, entre os indicados na categoria, havia eventualmente dois ou três espécimes da poesia concreta. Certo, isto não cancela a discussão no sentido em que estaríamos diante de um triunfo do concretismo, mas ao menos aponta na direção da diversidade do cânone que, por força de debates mais elevados, soube incorporar ao seu acervo eventos de uma “antitradição”. E antes de encerrar o pensamento com o outro parêntese, uma anedota.
Há alguns anos, num evento literário em Florianópolis, participei de um debate ao lado do escritor Wilson Bueno, cujo temperamento — menos histriônico, é verdade — me lembrou algo do canalhismo cortesão de Fabrício Carpinejar. A certa altura do diálogo, o tema da poesia concreta caiu na berlinda, e o editor do insepulto Nicolau, neste instante, deixou aflorar com algum recalque a sua viuvez do verso, daquele verso cujo “ciclo histórico”, segundo o manifesto do movimento concreto afirmava — com aquela pegada de matriz oswaldiana para a frase de efeito —, já havia se encerrado. Entre as muitas impropriedades ditas pelo poeta do portunhol a respeito do tema, recordo seu argumento para tentar provar que o concretismo não rendeu nenhum poema bom de verdade. O autor de Mar paraguaio disse que não tinha na memória ou que jamais conseguira memorizar sequer um poema concreto — talvez até tenha havido um esforço de sua parte, o que pode nos fazer reconhecer algum valor nessas obras. Mas o que interessa, segundo sua opinião, é que, um poema que não fica na memória do leitor não merece, portanto, o seu crédito, nem constar no florilégio da tradição. Ali, de imediato, apenas para tornar relativa a afirmação desastrosa que ouvira, tomei a palavra para dizer “de memória” alguns poemas concretos. Enfim, do alto de sua estúpida presunção, o rei de um olho só da terra escura do portunhol, por ter mais ouvido (mouco, por supuesto) para reter o verbivoco constitutivo da poesia da tradição, descartou de plano a poesia concreta, não levando em conta que esta, tanto quanto o legado poético como um todo, é um compósito triádico verbi-voco-visual. Falta a Bueno a faculdade da memória visual ou fílmica. No mínimo, toda a arte do cinema mudo também passou em branco para o poeta paranaense; cinema que estabeleceu a pedra mais filosofal que fundamental da gramática cinematográfica calcada na narrativa visual. Para Alfred Hichtcock, o exemplo de cinema ruim seria o filme que mostra personagens falando, ao contrário do cinema bom, que seria aquele em que vemos os personagens pensando. Onde anda a vida contemplativa de Wilson Bueno? Os compósitos espácio-visuais da poesia concreta são como partituras abertas ao leitor-executante que os interpreta na liberdade do seu pensamento. Qualquer bom poema (concreto, ex-concreto, inclusive) põe em ação um pensamento-linguagem. Fecho parêntese.
Em outra direção, deparamos os defensores obtusos, os eunucos dos “irmãos Campos”. Agora, me deterei, mas não muito, num destes exemplares. No momento, talvez seja o mais ativo. Trata-se de Cláudio Daniel. É, no mínimo, engraçada a sua trajetória de poeta e de crítico, supondo que o meu desafeto — ele me inclui entre os bárbaros que escrevem para Sibila — mereça ser assim apontado nas ruas. Somos, mais ou menos, da mesma geração e, portanto, devido a essa contigüidade, acompanhei desgraçadamente seus primeiros passos de afirmação e de tentativa de reconhecimento entre os seus iguais.
Se a memória não me engana, na década de 1990 colaborou assiduamente, ou assinou uma coluna no Poiésis, tablóide, já à época kitsch, de literatura e afins, publicado no Rio de Janeiro. Notável também, daquele ponto até aqui, sua perseverança num modo de abordagem das questões poéticas, sejam anteriores ou atinentes ao período, que consistia e consiste em reprisar os pontos de vista dos seus mestres dentro de um caminho já devidamente pavimentado por eles ou por outros seguidores mais dotados.
Como crítico, Cláudio Daniel se revela um rebarbativo divulgador das investigações ensaísticas de primeira hora do movimento da poesia concreta. Seus artigos (talvez calcados no lugar-comum de que o Brasil é um país sem memória) nunca passaram de peças aguadas, ecos avassalados desses textos hoje referidos à exaustão, inclusive dentro dos muros da academia. E ao contrário de uma parcela de críticos e comentaristas que ainda re-examinam e checam as idéias e controvérsias contidas em tais escritos, mas, o quanto possível, a partir de novas perspectivas, o teórico do neobarroco (copyright de Haroldo de Campos), por meio de um gesto que resta aquém mesmo da pior customização que se conheça a respeito do assunto, se aplica em jamais ultrapassar os marcos estabelecidos pelos que tacanhamente conferem um sentido de commodity ao viés da invenção.
Com efeito, Cláudio Daniel vai pisando a mesmidade como se fora um informante menor, obscuro, porém contemporâneo dos acontecimentos que serviram de base àquelas reflexões históricas. Assim, e paradoxalmente, o nosso querido Clowndaniel escreve com a maior seriedade, com “conhecimento de causa”, sobre ideograma, haikai, make it new poundiano, poesia visual, neobarroco, etc. Às vezes ele me parece mais um misto frio de estafeta patético e larápio do que propriamente um palhaço, tal como Luis Dolhnikoff o identifica em recente artigo.
Se eu não estivesse atento à falta de cultura implicada no revanchismo tardio e na emulação desinteligente de analistas como esses, cujas opiniões, ainda que de passagem, acabo de problematizar, junto com a água suja que sobrara do concretismo ainda lançaria pelo ralo, a par da apologia emasculada, além do já mencionado Max Bense, por exemplo, também o imenso poeta-crítico Ezra Pound e suas concepções poéticas; a antropofagia de Oswald de Andrade (que alguns, num gesto de revisão “reaça” do modernismo, pretendem substituir por Cecília Meireles); a prosa musical de James Joyce, a beleza dificílima de A educação pela pedra de João Cabral de Melo Neto, etc. De outra parte, tudo isso confirma desgraçadamente que, de tempos em tempos, a tarefa crítica nos obriga a dispensar algum tempo rebatendo fanfarronadas que, não fora por uma recepção ainda mais burra e disposta a espichar-lhe os ouvidos, poderiam muito bem ser esquecidas para todo o sempre, ou alfinetadas e engavetadas para o vindouro apetite do pesquisador subvencionado. Em suma, tanto os “detratores” (mencionados no início dessa peça) como os “apoiadores”, encarnados na figura redundante e fugidia de Cláudio Daniel, mas que poderia ser na de outro qualquer, se mostram árduos farsantes da cena literária, o que perpetua, por entropia, a recepção acrítica, não só da Poesia Concreta, como de toda a poesia de nível.
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